Quando se cosiam as meias…

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Daqui a pouco chega mais um ano! Novo, ao que dizem!

Acabados os excessos provocados pelas comemorações do nascimento do Menino Jesus, há que voltar à terra, ao dia-a-dia muitas vezes enfadonho, os dias actuais do usa e deita fora.

As celebrações natalícias trouxeram consigo, para além dos inevitáveis quilos a mais e que vão condicionar as enchentes dos ginásios logo no início do Ano Novo, nem que seja para cumprir uma promessa que rapidamente será "descumprida", porque esta coisa de perder uns quilitos dá trabalho e canseira, vieram os presentes, uns úteis, outros nem por isso, com o afã das trocas das peças de roupa que ficaram apertadas ou demasiado largas, ou que ficarão esquecidas até um dia.

As comemorações do nascimento do Menino Jesus, com todo o consumismo que provocam, muitas vezes fazem esquecer que em primeiro lugar, antes que o Menino tenha sido reconhecido como Filho de Deus, foi só um menino que nasceu da sua Mãe!

Sebastião da Gama escreveu um poema que pode descrever o que se passou naquela noite fria aquecida que foi pelo calor dos poucos que tiveram a fortuna de presenciar um acontecimento que, passados mais de dois mil anos, ainda se comemora como se tivesse acontecido ontem.

Começava assim, o poema:
"Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
...Somente,
esquecida das dores,
...a minha Mãe sorriu e agradeceu."

A Mãe sorriu e agradeceu...
Era disso que se tratava! E só!

Da felicidade sentida pela Mãe com o seu Menino, ao colo, mesmo que numa manjedoura aquecida pelo calor dos animais que pernoitavam naquele estábulo, o único espaço vazio onde lhes foi permitido pernoitar.

E dar à luz!

Naquela noite poderia não ter havido nada de novo!

Nada que não fosse a ternura que uma Mãe sente quando abraça o seu bebé e o aconchega no calor do seu regaço, como se estivessem sozinhos num mundo que não sabia que havia nascido o Messias anunciado pelos Profetas.

Mesmo com toda a ternura com que uma Mãe, qualquer Mãe, olha para o fruto do seu ventre quando nasce, hoje, passados mais de dois mil anos, já não está tudo como estava!

Há, continua a haver, a esperança que haja sempre uma Mãe que, esquecida das dores, possa sorrir e agradecer a dádiva que acabou de receber e olhar com ternura para o ser a quem acabou de dar vida.

E há, sempre haverá, uma Mãe que sorri e agradece...

Mas o mundo mudou e mudou e mudou...

E o Menino que então nasceu, cresceu para ser Cristo e ao crescer para ser Cristo, fez também com que o seu nascimento deixasse de ser só um momento de ternura e agradecimento da sua Mãe para passar um dia de agradecimento por parte de tantos quantos O veneram como o Messias Salvador.

O mundo mudou e mudou desde então, a sociedade transformou-se numa ânsia consumista de tal forma intensa que as prendas que se trocam no dia de agradecimento pelo nascimento do Menino passaram a ser prendas trazidas do Polo Norte por um velhinho bonacheirão, invenção publicitária de uma marca de refrigerantes!

Mas haverá sempre uma Mãe a sorrir e a agradecer...

E continuava assim poema de Sebastião da Gama:

"Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe..."

E se nada de novo se tivesse passado naquela noite? Teria nascido um Menino igual aos outros meninos.

Mas passou-se algo de novo, algo que estava anunciado e o que de novo se passou transformou a História trazendo uma Fé diferente ao mundo! E essa Fé fez o mundo mudar com todas as consequências, boas e más, que advêm de mudanças profundas como as que Jesus ensinou.

Mas o mundo, as suas comunidades, foram também mudando, fruto, também, de questões que a própria Fé se punha a si mesma.

E mudou tanto, que nos nossos dias uma nova fé, mercantilista, se foi desenvolvendo e enraizando na comunidade levando a que o que está usado e tem pouca utilidade é simplesmente descartado, deitado fora.

Sem que haja tentativa de conserto ou reutilização!

Já não se cosem as meias!

Eu cresci numa época em que ainda de cosiam meias.

Aprendi a fazê-lo, e fi-lo algumas vezes porque era assim: ou cosia o buraco pequeno ou este alastrava e ficava mais difícil, ou impossível, o conserto. Depois, um dia, isso acabou! As meias rotas deitavam-se fora. Já ninguém cosia as meias, já ninguém remendava o buraquinho.

Descartavam-se, deitavam-se fora!

O mundo mudou, a comunidade mudou. Usar e deitar fora passou a ser a regra abrangente. Mas enquanto esta regra se cingia às meias rotas que já não se cosiam não teve grande importância. Mas generalizou-se, tornando-se numa espécie de moral omnipresente, e com esta generalização, com a banalização do usar e deitar fora, perdeu-se um pouco, ou muito, a noção do que é certo e do que é errado, do que se pode ou não se pode, do que se deve ou não fazer uns aos outros: usa-se e deita-se fora. É aparentemente mais fácil, mas torna tudo mais duro. E ao tornar tudo mais duro, porque se perde a noção da ternura e do agradecimento, a resposta, a única resposta é a violência, a agressão e o desprezo e, como sabemos, a violência atrai a violência, a guerra atrai mais guerra, mesmo quando é dita ser justa e santa! Não há guerras nem justas nem santas, há sim, o usar e deitar fora de vidas humanas inocentes.

Perdemos a noção de que houve um tempo em que se cosiam as meias, em que se acarinhavam os pequenos gestos e os presentes que o eram para a vida, em que se guardavam as memórias mesmo que cosidas como as meias.

Perdemos a noção de que para sermos felizes basta nos lembrarmos quando nascemos não há nada de novo senão cada um de nós! Não há nuvens a se espantarem, ninguém enlouquece!

Basta nos lembrarmos que para que o dia seja enorme basta toda a ternura dos olhos da nossa Mãe...

Com a esperança de que ainda haja meias para coser, desejo que 2024 seja pleno de felicidade e saúde!

Médico

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