A ideia chegou-lhes numa noite de verão, no passeio público [atual Avenida da Liberdade, em Lisboa], em frente de duas chávenas de café. Os dois amigos, Eça de Queirós, então com 24 anos, e Ramalho Ortigão, de 33, estavam aborrecidos, "penetrados pela tristeza da grande cidade que cabeceava de sono"..Vai daí deliberaram reagir e "acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias" [que à época se situava no Bairro Alto], contam eles no prefácio à terceira edição do folhetim em livro..Um em Leiria (Eça), outro em Lisboa (Ramalho), munidos apenas da sua imaginação, de uma resma de papel, da sua alegria e da sua audácia, puseram mãos à obra e ter-se-ão divertido à brava naqueles dois meses em que enganaram o bom povo que lia o jornal e avidamente acompanhava as cartas ao "Sr. redator do Diário de Notícias", publicadas a partir de 24 de julho de 1870..Estas, provenientes de diferentes protagonistas da aventura, todos anónimos, narravam misteriosos acontecimentos passados algures entre Sintra e a capital, que envolviam um oficial inglês morto com ópio, e iam formando um puzzle deslindado apenas a 27 de setembro, data em que os autores se deram a conhecer e revelaram a natureza ficcional do folhetim..A trama, urdida para criar suspense dia após dia, obedecia à lógica folhetinesca, mas ao mesmo tempo subvertia-a na medida em que durante os dois meses em que foi publicada, só os autores e Eduardo Coelho, diretor do jornal e amigo de Ramalho Ortigão, saberiam que tudo aquilo existia apenas na imaginação dos dois escritores. Uma carta, assinada por Z. e antecedida de uma nota do próprio Diário de Notícias, é particularmente deliciosa, se lida a esta luz.."Senhor redator do Diário de Notícias. - Lisboa, 30 de Julho de 1870. - Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quase toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor anónimo conta o caso que essa redação intitulou O Mistério da Estrada de Sintra. Interessava-me essa narrativa e (...) ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do roman-feuilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciais do nome de um homem - A.M.C. - acrescentando-se que a pessoa designada por estas letras é estudante de Medicina e natural de Viseu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia, portanto, o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamíssima. Isto não é lícito a romancista nenhum.."A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio. Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periódico, procurei o meu amigo, para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me à sua disposição no caso de que precisasse de mim para pedir, quanto antes, à redação do Diário de Notícias a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo. Em casa do meu amigo acabo, porém, de saber, cheio de confusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é ignorado o seu destino!".A.M.C., que na verdade era tão inventado como Z., andava nas bolandas que fariam dele personagem fulcral para o desfecho da história de amor, ciúme, adultério e morte que apaixonou (e fez crescer) os leitores do Diário de Notícias. Uma história sem vilões, apenas trágicos e humanos enganos, na qual, pelo meio, Eça e Ramalho - é também um mistério quem escreveu o quê - vão já espetando umas Farpas, quando dão voz ao estudante de Medicina, e até teorizando sobre a volatilidade feminina e as (evitáveis?) fatalidades da paixão, fazendo lembrar Flaubert e a sua Madame Bovary, também ela publicada primeiro em folhetim - na revista Revue de Paris, em 1856 -, quando a condessa de W faz a sua confissão..Era ao povo e à burguesia - às massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos jornais..Assim, o rodapé da primeira página, designado de folhetim, onde iam parar os assuntos mundanos, as piadas, as receitas e os diz-que-diz, passou a ser ocupado por romances em série, os tais romans-feuilletons de que falava Z. na sua carta ao senhor redator do Diário de Notícias..Honoré de Balzac foi um dos pioneiros do género, no jornal La Presse, em 1836, com A Solteirona, Alexandre Dumas fez render a sua pena com O Conde Monte Cristo, OsTrês Mosqueteiros, entre outros, mas o grande fenómeno aconteceu com Os Mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats entre junho de 1842 e outubro de 1843..O escritor, filho do médico de Napoleão e frequentador dos salões da alta burguesia, desce ao bas fond parisiense e as histórias que resultam dessa incursão são de tal forma poderosas que não só atraem a atenção de milhares de leitores como o transformam também a ele, que de aspirante a dandy passa a ativista na defesa dos direitos do povo. O jornal ganhou leitores, a fórmula espalhou-se mundo fora - Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Brasil - e o folhetim conquistou um lugar de destaque na literatura mundial..Na senda de Os Mistérios de Paris, e ainda antes do disruptivo Mistério da Estrada de Sintra, Camilo Castelo Branco publicou, no diário portuense O Nacional, Os Mistérios de Lisboa, em 1853, e muitas cidades e jornais do mundo tiveram os seus mistérios, atrás do sucesso de Eugène Sue..É certo que muita da produção literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas o facto de permitir aos escritores uma renda regular, que lhes dava tempo e espaço para escrever, tornou possível romances intemporais, como Crime e Castigo, de Dostoievski, ou Anna Karénina, de Tolstoi; Ulisses, de James Joyce, ou os vários Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle; todos os romances de Charles Dickens ou A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe; A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, ou As Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, entre muitos outros..No século XX, ao contrário do que talvez se possa pensar, o aparecimento da rádio e depois da televisão não mataram os folhetins. Um Adeus às Armas, de Hemingway, Terna É a Noite, de Scott Fitzgerald, ou A Sangue Frio, de Truman Capote, foram impressos primeiro em jornais ou revistas. E, enfim, as tramas seriadas foram conquistadas pelos microfones radiofónicos e ecrãs de televisão. As novelas e séries, que continuam a prender-nos, não são mais do que descendentes dos velhos folhetins.