Quando os factos ainda se reportavam depois de acontecerem

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Por muito que isto seja difícil de imaginar, a verdade é esta (prepare-se): houve um tempo em que o jornalismo se fazia sem internet nem telemóveis nem máquinas fotográficas digitais nem redes sociais nem correio eletrónico. Há 25 anos ainda era assim.

Já existiam computadores portáteis, é certo, mas ligavam--se a linhas telefónicas. A coisa já de si era complicada, com um telefone normal: implicava desenroscar bocais dos telefones, ligar cabos, descarnar cabos, engenho de ladrão de carros a fazer ligações diretas nas ignições - uma trapalhada.

Mas mais complicada se tornava quando o telefone era por satélite (uma grande inovação que a primeira Guerra do Golfo celebrizou). E estando esse telefone satélite num barco, em movimento, suavemente balançando algures num oceano que nesses dias fez o favor de merecer o nome de Pacífico (sorte a dos jornalistas), então entrava-se no domínio do quase impossível. Junte-se a isto um jornalista que não tinha um ano de profissão - este que se assina - ao serviço de uma agência, a Lusa, obrigada pela natureza do seu serviço a manter as redações informadas minuto a minuto; e, já agora - como se tudo o resto não chegasse - o facto de o telefone por satélite posto ao dispor desse jornalista ser partilhado com uma rádio, a Antena 1, que, evidentemente, teria de ter a primazia do uso quando chegasse a altura de entrar em direto. Enfim, a receita para o desastre.

É claro que não houve minuto a minuto. O serviço produziu-se em grande parte a partir de Lisboa, ouvindo as rádios enquanto estiveram em direto. O jornalista, esse, mandou o trabalho quando finalmente o telefone ficou livre - ou seja, quando tudo já se tinha passado. Ninguém pareceu importar-se muito. Nesse tempo vigorava uma estranha lei no jornalismo: reportavam-se os acontecimentos antes de acontecerem mas também (esta é a parte estranha) depois de acontecerem (hoje ficamo-nos muitas vezes pelo antes).

Pelo meio, espantou-se por ver que a tensão que se tinha acumulado durante semanas - com a preparação da missão, as dúvidas sobre a sua realização, os dias de espera ansiosa em Darwin, a navegação ao encontro da mítica ilha, as fragatas indonésias que se revelaram ao amanhecer escoltando, ameaçadoras, o inofensivo ferry - se desvaneceu numa questão de minutos, quando o barco, ordenado pelos indonésios, parou e deu meia-volta, mal havendo tempo para lançar umas flores ao mar.

Foi para isto então toda esta trabalheira? Foi. A Missão Paz em Timor fez-se para reforçar perante o mundo a ideia de que Timor era uma território administrado por um poder autoritário, militarizado e brutal, que se mostrava sempre que podia, mesmo que não fosse necessário, perante gente desarmada e inofensiva.

Todos os ativistas a bordo o sabiam. Levar uma flores ao cemitério de Santa Cruz foi só um pretexto. Dada meia-volta, os ativistas adormeceram. E quando acordaram, horas depois, celebraram a vida com uma incrível festa - como se de um cruzeiro juvenil de fim de curso se tratasse. Ser militante não é ser enfadonho.

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