Quando o pior inimigo de um rei preguiçoso é o mordomo do palácio

Luís V de França ficou na história como o rei preguiçoso, ou Fainéant. É injusto. Mas a culpa veio de trás, dos chamados <em>rois fainéants</em>, ou que nada faziam. É uma acusação de que ainda hoje os presidentes franceses fogem.
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Teve a França no século X um monarca chamado Luís, o Preguiçoso. Fosse este um artigo preguiçoso e ficaríamos por aqui. Uma breve. Mas Luís V, ou Louis, le Fainéant, foi o último dos reis carolíngios e, portanto, a sua preguiça poderia ficar associada ao fim de uma distinta dinastia da história da Europa que teve em Carlos Magno a figura máxima. De novo, uma versão preguiçosa da história. Esclarecem os historiadores que a fama de nada fazer (fainéant, mas preguiçoso em francês também pode ser traduzido por paresseux) é injusta para com o jovem Luís, que na realidade até se mexia, e bastante, pois morreu com 20 anos da queda de um cavalo quando participava numa caçada.

O epíteto de O Preguiçoso resultou meramente de um reinado curtíssimo, um ano, que não lhe permitiu deixar legado, o que admitamos é bem diferente de não fazer nada. Também não deixou descendência, apesar de ter sido casado e depois divorciado por as aventuras amorosas serem demasiado para a paciência da sua rainha, uma mulher 20 anos mais velha. De novo, fosse este um artigo preguiçoso e não se diria que à dinastia dos carolíngios sucedeu a dos capetianos, ou dos capetos, que reinará até meados do século XIV. Já agora, para os fãs de teorias da conspiração, Luís V caiu do cavalo numa coutada que pertencia a Hugo Capeto, que seria o novo rei.

Luís, o Preguiçoso foi alcunhado de nada fazer, ou Fainéant, por causa do tal reinado curtíssimo, mas o cognome não era inédito na história francesa. Aliás, existe toda uma série de rois fainéants, nada menos do que sete, de Teodorico III a Quilderico III, ou seja, de 673 a 751. Mas imagina-se mesmo um país a sobreviver quase um século de sucessivos reis preguiçosos? Bem, não sejamos preguiçosos e analisemos mesmo o que se passou para justificar tal cognome, ainda hoje uma ofensa que se usa com gosto na política francesa (a isso já iremos mais adiante se não for muito cansativo).

Na realidade, os sete reis preguiçosos dos séculos VII e VIII eram sim reis sem qualquer poder. Claro que descendiam de Clóvis, o rei franco que se converteu ao catolicismo e ainda é visto como o fundador da França. Mas a dinastia merovíngia teve o seu último monarca digno desse nome com Dagoberto I e depois dele houve divisões de territórios e sobretudo substituição no poder dos reis pelos mordomos do palácio, espécie de primeiros-ministros, em regra também passando o cargo de pai para filho.

Façamos um pouco mais de esforço e olhemos bem para um desses mordomos do palácio, designação enganadora para quem não só sabia gerir os assuntos do reino como também pegar em armas e enfrentar o mais terrível dos inimigos: foi o que fez Carlos Martel, que em 732 derrotou os exércitos omíadas em Poitiers e forçou os árabes a resignarem-se à Península Ibérica como possessão em terra europeia. Admirado pela população, elogiado pelo Papa, respeitado pela restante nobreza, Martel não chegou a coroar-se rei, mas não foi por preguiça. O seu filho Pepino, sim, deu esse passo, e acabou com os merovíngios, substituindo-os pela dinastia carolíngia. E o filho de Pepino, neto de Martel, tornou-se tão poderoso que foi rei em 800 e ainda mais, o primeiro imperador na Europa Ocidental desde a queda de Roma em 476. Chamava-se Carlos Magno, um monarca enérgico, todo o oposto dos últimos merovíngios.

Se fôssemos preguiçosos, a história estava contada: com a ascensão dos carolíngios, os reis preguiçosos saíam da história pela porta pequena. Mas na realidade, se hoje se fala dos rois fainéants, mais famosos como conjunto do que pelos nomes próprios, tal deve-se a Eginhardo, o cronista às ordens de Carlos Magno. Foi o escriba imperial que cunhou o termo "reis do nada fazer", decretando que estes nada tinham feito digno de registo e portanto legitimando assim a passagem da coroa de uma dinastia para a outra. Se Eginhardo tivesse sido preguiçoso na sua crónica, limitando-se a enumerar os nomes dos derradeiros merovíngios, não haveria pois reis preguiçosos na história, talvez nem sequer Luís V teria sido assim designado.

Se pensa que chegou ao fim da história dos rois fainéants engana-se. Não sejamos preguiçosos e olhemos um pouco para a atualidade política de França, o país europeu onde mais se associa o presidente a uma espécie de rei republicano, um legado de Charles de Gaulle, de quem nunca se poderá dizer que nada fazia: como general transformou a França de derrotada em vencedora da Segunda Guerra Mundial, como presidente teve a coragem de conceder a independência à Argélia.

Mas nem todos os seus sucessores têm a mesma fibra e quando atacam ou são atacados um dos insultos mais fortes é falar de fainéant. Por exemplo, François Hollande teve em tempos direito a um artigo no Le Monde sobre a sua determinação em não ser um rei preguiçoso. Já Nicolas Sarkozy se fazia comparar com os antecessores, sobretudo Jacques Chirac, mas sem o nomear, criticando os fainéants do passado. E Emmanuel Macron, jovem mas sabendo por Luís V que isso não protege da fama de preguiçoso, chama aos que condenam a sua liderança de fainéants, adeptos do imobilismo político. Ponto final? Não. Não sejamos preguiçosos. Falta um remate que faça justiça ao título deste artigo: Hugo Capeto não era um mordomo do palácio, mas sim duque dos francos. E já agora, trisavô de D. Henrique, o pai do nosso primeiro rei, certamente o menos preguiçoso dos monarcas, pois à espada fez um país que ainda hoje dura: Portugal.

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