Quando o "outro" somos nós: a propósito do bicentenário da independência do Brasil
Actualmente os 210 mil brasileiros que vivem em Portugal representam a maior comunidade imigrante residente no País. Também, por isso, e para além dos laços de natureza cultural, política e económica que continuam a unir os dois países, faz sentido revisitar a afirmação recente de Benjamim Moser, autor da primeira biografia em língua inglesa de Clarice Lispector, quando o historiador norte-americano admitiu gostar de ver uma estátua da escritora brasileira, no Chiado, junto a Fernando Pessoa.
Nascida na Ucrânia, a mesma Lispector, que tinha declarado na abertura do seu romance A Paixão Segundo G.H. -- considerada uma das principais obras escritas em língua portuguesa do século XX -- gostar que o seu livro fosse lido "por pessoas de alma já formada", numa clara alusão à relação, complexa, que manteve com a fé e com a igreja, permite-nos observar, através da riqueza dos seus textos, as múltiplas camadas que compõe a complexidade de uma obra encarada como uma janela que permite ao Historiador espreitar e revisitar não só o Brasil das primeiras décadas do século XX, mas, sobretudo, a importância que as comunidades imigrantes, categoria onde Lispector se incluiu, tiveram, e continuam a ter, na construção do Mundo global em que vivemos.
A crescente desigualdade provocada pelo aumento do desemprego e pelo acréscimo do preço dos bens alimentares, a que diariamente assistimos, tornarão o Mundo mais vulnerável e criarão as condições para um aumento dos níveis de violência e conflitualidade, colocando, uma vez mais, o "outro" e as suas "diferenças", que são as de todos nós, sob escrutínio. Sempre entendi que a História, em geral, e a Contemporânea em particular, devem ser entendidas como um "compromisso social" e um "dever cívico", que promova não só a reflexão e o diálogo, mas, também, uma cidadania activa capaz de dar resposta aos inúmeros desafios com que, diariamente, somos confrontados.
Ao longo dos séculos milhares de portugueses, imigrantes no Brasil, personificaram esse "outro" que tantas vezes procuramos anular, um "outro" que em momentos de crise e dificuldade, como aquele que a Grande Guerra representou, não hesitaram em mobilizar esforços e que, actualmente, nos ajudam a pensar os conflitos, a partir de novos actores - as comunidades emigrantes - mas também a entender e a encarar a emigração, para além daquilo que significam as respectivas remessas monetárias.
A Grande Guerra representou um momento de unidade para as comunidades lusófonas, sobretudo as residentes nos Estados Unidos da América (em particular nos Estados da Califórnia e do Havai), mas, também, no Brasil. O Brasil era então, tal como Portugal, uma jovem República e os portugueses que para aí tinham partido no final do século XIX, encontravam-se integrados numa rede associativa e filantrópica dinâmica que, rapidamente, se mobilizou quando a Alemanha declarou guerra a Portugal, em Março de 1916. Esta união transatlântica tinha já estado presente em vários momentos, desde logo em 1915 quando o Centro Republicano Português de São Paulo tomou a iniciativa de fundar uma delegação da Cruz Vermelha Portuguesa no Brasil, e, mais tarde, no Rio de Janeiro.
Apesar de politicamente dividida relativamente à mudança de regime em Portugal, a 5 de Outubro de 1910, a comunidade portuguesa no Rio de Janeiro acabou por constituir, no salão do Jornal do Comércio, a 16 de Março de 1916, a Grande Comissão Pró-Pátria, liderada pelo Visconde de Morais. A esta Comissão competiu reunir e aplicar os donativos da comunidade portuguesa residente no Brasil, a sua primeira subscrição foi lançada ainda em Março de 1916, os seus impulsionadores utilizaram, com o apoio do embaixador de Portugal, a rede consular portuguesa, tendo recorrido, igualmente, às associações portuguesas e lojas do Rio de Janeiro, para divulgar as respectivas iniciativas. Ao longo dos dois anos seguintes, através da realização de espectáculos e festivais foi possível recolher verbas que lhe permitiram fazer doações à Cruz Vermelha Portuguesa, e constituir uma comissão destinada a angariar donativos destinados à Assistência Religiosa ao Exército Português em Campanha, ainda que a sua obra mais emblemática tivesse sido a Assistência da Colónia Portuguesa do Brasil aos Órfãos da Guerra. Apesar de os edifícios só terem ficado concluídos em 1930, o Visconde de Morais escreveu ao comandante do Corpo Expedicionário Português, informando-o da respectiva constituição logo em 1918, quando as bases para a sua organização, da autoria do escritor Carlos Malheiro Dias, foram lançadas, simbolicamente, na biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura.
O exemplo da Grande Comissão Pró-Pátria mostra-nos que tanto na Guerra como na Paz, o "outro" de sotaque diferente, aquele que Clarice não tendo, fez questão de nunca procurar perder, muitas vezes apontado como hostil, tantas vezes discriminado, acrescenta, sempre, cor, ritmo e riqueza cultural à sociedade onde, com mais ou menos dificuldade, se procura inserir, fazendo, dessa nova comunidade a sua casa, porque o "outro" somos sempre nós.
Historiadora