Quando o desgosto destrói a resistência de um corpo já doente

As mortes coincidentes são raras, mas acontecem. Os mais velhos com problemas de saúde correm maior risco quando perdem alguém muito próximo, explicam os especialistas
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"Por si só, a emoção forte não mata, mas há um aumento do risco, que numa pessoa frágil pode ser fatal." As palavras são do neurologista Lopes Lima, a propósito da morte de Debbie Reynolds, a atriz que morreu na sequência de um acidente vascular cerebral (AVC), enquanto preparava o funeral da filha, Carrie Fisher. Não há nada que prove que não foi apenas uma coincidência, mas os especialistas ouvidos pelo DN defendem que pode existir uma relação direta entre o desgosto sofrido pela lenda de Hollywood e a sua morte.

Embora não sejam muito frequentes, há relatos semelhantes: pais que morrem após a morte dos filhos, homens que não resistem ao desaparecimento das mulheres. Será que o desgosto pode levar à morte? "Naturalmente, quando há uma emoção muito forte, há o perigo de arritmia cardíaca. Se a pessoa tem uma fragilidade, como doença cardíaca ou idade avançada, a emoção, o aumento de adrenalina e a ansiedade podem ser a gota de água...", explica ao DN o neurologista Lopes Lima.

A protagonista do filme Serenata à Chuva tinha vários fatores de risco, já que, além dos seus 84 anos, teria sofrido pelo menos um AVC nos últimos meses. Segundo o filho, Todd Fisher, terá sofrido outro na terça-feira. Ressalvando que não foi feito um comunicado oficial sobre as causas, Carlos Aguiar, cardiologista do Hospital de Santa Cruz, diz que podem existir várias explicações para a sua morte. Uma delas é o contributo que o stress - neste caso causado pela morte da filha - pode ter para os problemas cardiovasculares, nomeadamente AVC e enfarte do miocárdio. "Há estudos multinacionais e intercontinentais que mostram que o stress é fator de risco para o enfarte e AVC", indica.

Segundo Carlos Aguiar, Debbie passou por um "problema muito agudo de stress com a morte da filha", mas, mesmo em pessoas mais novas e sem historial de doença, são situações que podem ocorrer. "É menos provável, mas também pode acontecer. No entanto, não é habitual ser tão rapidamente fatal", esclarece o cardiologista. Se houver uma arritmia e a pessoa não for reanimada atempadamente, morre.

Outra explicação, diz o cardiologista, é que a emoção negativa tenha provocado síndrome do coração partido, também conhecida como cardiomiopatia Takotsubo, uma patologia que afeta sobretudo mulheres e que é mais frequente entre os 50 e os 60 anos. Esta é em tudo semelhante ao enfarte agudo do miocárdio, mas não há alterações nas artérias coronárias. O coração é bombardeado com hormonas de stress mas, regra geral, o doente recupera ao fim de algumas semanas. No entanto, ressalva Carlos Aguiar, aumenta o risco de arritmia, que em alguns casos pode ser fatal. Embora Debbie tivesse mais idade, o médico acredita que pode ser uma explicação. Além da morte, esta síndrome também pode ocorrer em caso de divórcio ou desemprego. "Mas a sua prevalência é bastante baixa."

Pontualmente surgem casos de casais de idosos em que homem e mulher morrem no mesmo dia, ou com apenas alguns dias de diferença. "O meu vizinho teve um AVC e ficou totalmente dependente da mulher. Ela assumiu a missão de cuidar dele. Durante meses, era ela que fazia tudo, inclusive os cuidados de higiene. Quatro dias depois de ele morrer, e sem motivo aparente, ela morreu", conta ao DN Isabel Rocha, proprietária de um restaurante em Lisboa. Nestes casos, o neurologista Lopes Lima diz que a pessoa fica perdida. "Entra em depressão, fica inativa, abandona-se mais e isso pode fazer que tenha uma morte mais acelerada."

Segundo José Eduardo Rebelo, professor na Universidade de Aveiro e fundador da Apelo (Associação do Apoio à Pessoa em Luto) e da Sociedade Portuguesa de Estudo e Intervenção no Luto (SPEIL), "as mortes coincidentes não são muito frequentes" e, na maioria dos casos, ocorrem com idosos. "A situação que envolve perda de filhos será ainda mais rara", destaca o docente, que se dedicou a estudar a psicologia do luto depois de perder a mulher e as filhas.

Para perceber este fenómeno é necessário entender "como funcionam os relacionamentos". "O ser humano escolhe as pessoas com quem se quer ligar por uma necessidade quase fundamental, quase de sobrevivência", diz ao DN. Quando morre alguém querido, "há um abalo profundo que provoca stress e que, conjugado com debilidades, pode conduzir à morte". Destacando que "o ser humano foi formatado para a sobrevivência", o também fundador do Observatório do Luto em Portugal sublinha que "o bem-estar tem de ser recomposto" e é isso que acontece com o luto. "Não se morre de luto. Não é um fator de morte", sublinha.

Dentro do processo de luto, José Eduardo Rebelo conta que "há episódios depressivos, uma grande tristeza, episódios de culpa, agressividade e desalento". Esse desalento pode fazer que a pessoa deixe de se alimentar bem, por exemplo. "Ao ficar obcecada com a pessoa perdida pode esquecer-se de si própria. Mas é raro." Se deixar de ser "episódico", "entramos no luto psicopatológico ou doentio". No entanto, adverte, "entre 85% e 90% dos lutos são sadios".

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