Quando ir ao banco até parece uma mudança de continente
O coronavírus apanhou-me desprevenida com a impressora avariada, quase elevada ao estatuto de mono. Do banco diziam-me que tinha mesmo de assinar o documento, que se não tinha como imprimi-lo e digitalizá-lo era preciso deslocar-me às instalações. Ainda fingi alguma relutância, mas depressa vi ali uma oportunidade para sair do bairro e ver como "mexe" a cidade... Afinal, nos tempos que correm, afastar-me dois quilómetros de casa tem praticamente o sabor de uma viagem intercontinental!
Mais do que uma crónica sobre uma simples ida ao banco (que neste tempos não é assim tão simples e que antes era aborrecida!), esta é uma crónica sobre a liberdade que estes novos tempos nos roubaram e até sobre autoestima, se quisermos. Liberdade porque um inimigo invisível, que chegou para matar, nos prende dentro de casa e nos tirou o poder de decidir ir beber um simples café. De autoestima porque, entregues ao teletrabalho, nos resignamos a andar de uma maneira qualquer, muitas vezes de pijama. É verdade que estamos confortáveis, mas sem brilho e com medo de nos vermos ao espelho. Falo por mim...
Um passeio destes, de dois quilómetros, justificou voltar ao roupeiro para escolher algo que vestir (já nem me lembrava da minha roupa!) e até pôr uma cor na cara! Sabia que, pela primeira vez desde estas duas semanas de cativeiro, iria estar frente a frente com uma pessoa arranjada - porque a minha gerente de conta continua a sair todos os dias de casa para ir trabalhar e não deixa esses créditos por mãos alheias, mesmo que agora tenha de atender os clientes de luvas.
A Margarida foi esta manhã todo um mundo novo, tão diferente daquele com quem me cruzei na vez que fui às compras - pessoas a quem só vejo os olhos, com um ar desconfiado a olhar-me de soslaio porque não tenho nem máscara nem luvas.
O banco estava vazio. Tive que tocar para poder entrar. A minha filha, que me acompanhou porque também adora viajar, ficou à porta, ao frio. Foi chato, mas agora só entra uma pessoa de cada vez. Condoída, ao fim de alguns minutos, uma funcionária deixou-a entrar, mas ficou sentada lá ao fundo, num canto, já enregelada.
Soube-me bem estar ali à frente da Margarida. Acho que era capaz de lá ficar a tarde toda, a falar de aplicações financeiras até, só para não ter que estar a escrever sobre as desgraças do covid-19 e como esta crise sanitária se vai transformar numa tragédia económica. Ainda arranjei outro papel para assinar, mas ao fim de algum tempo a porta abriu-se para sairmos.
Se tinha viajado para outro continente, porque não ir ao mercado e aproveitar para encher o frigorífico de legumes e frutas, pelo menos, para mais uma semana? Entre um local e outro, na baixa de Setúbal, surpreendeu-me ver mais gente na rua, mais carros a circular do que há precisamente uma semana quando também me escapuli para ir às compras. É verdade que não se pode comparar com um dia normal, até porque haver lugares de estacionamentos vazios diz tudo, mas ainda assim bem mais do que esperava ver.
A fila para entrar na praça foi rápida - 3 minutos e já estávamos lá dentro. Por estes dias, também o Mercado do Livramento não é o mesmo - parece que não tem vida, os pregões das peixeiras não se ouvem e há muitas bancas fechadas. A verdade é que fui à procura de cor para trazer para casa e ali não a encontrei.