Quando as curtas refletem os temas das longas

Nos formatos curtos, Derek Jarman deixou marcas totalmente cúmplices do que fez nas longas-metragens. Com especial destaque para os seus "telediscos".
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Derek Jarman não foi um "especialista" da curta-metragem. Ou melhor, não se pode dizer que a sua atitude criativa tenha dependido de padrões autónomos para as durações longas e curtas. O certo é que, num misto de urgência e contenção, uma parte do seu legado cinematográfico envolve narrativas breves. A começar por Ostia (1988), um filme de 26 minutos realizado por Julian Cole, sobre os acontecimentos que levaram ao assassinato de Pier Paolo Pasolini (1922-1975); Jarman participa como intérprete, assumindo, precisamente, a personagem de Pasolini, numa "sobreposição" simbólica em que muitos são levados a detetar uma cumplicidade silenciosa entre os dois autores, tecida sob o signo da arte e da morte.

Uma parte significativa das curtas de Jarman são telediscos. Em boa verdade, a designação de "telediscos" é discutível, quanto mais não seja porque a sua generalização está ligada à nova cultura audiovisual gerada a partir do aparecimento da MTV, em 1981. Ora, Jarman foi alguém que, antes e depois, demonstrou uma evidente e multifacetada disponibilidade para superar as relações mais académicas entre música e imagem em movimento.

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Duas referências são fundamentais no interior dessa dinâmica: Marianne Faithfull: Broken English (1979) e The Smiths: The Queen Is Dead (1986). De duração muito próxima (12 e 13 minutos, respectivamente), constituem uma espécie de colagem de telediscos de canções (três em ambos os casos) pertencentes aos álbuns identificados nos títulos. E deparamos com um "método" transversal ao trabalho de Jarman: a combinação de imagens de descarnado realismo com outras de assumido, por vezes enigmático, simbolismo.

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Dir-se-ia que Jarman encarou as durações curtas também como um bloco-notas das mais diversas experiências. Veja-se Studio Bankside (1972), quase um "home video" sobre uma zona onde o cineasta viveu e trabalhou (com música dos Coil, apenas acrescentada em 2005). Ou Sulphur (1973), jogo de texturas e sobreposições assumido como celebração vivamente abstracta (a música dos Cyclobe foi adicionada para a edição de 2012 do Festival Meltdown). Ou ainda Sebastian Wrap (1975), contemplação dos efeitos da luz sobre corpos de homens filmados nos cenários em que acabara de ser rodada a longa-metragem Sebastiane.


Por vezes, os filmes envolvem a aproximação de outras linguagens, nem que seja pela identidade dos seus protagonistas - é o caso de Pirate Tape (1982), outro exercício de transmutação das imagens cujo pretexto é a primeira visita do escritor William S. Burroughs ao Reino Unido. Entretanto, em Waiting for Waiting for Godot (1982), Jarman regista os ensaios da peça de Samuel Beckett na Royal Academy of Dramatic Art, numa atitude em tudo e por tudo distante de qualquer "reportagem" televisiva: o filme foi rodado em Super 8, tomando como referência as imagens disponíveis num monitor de vídeo. É um símbolo modelar da visão do cineasta: para Jarman, nenhum género narrativo era definitivo ou imutável - filmar é reinventar a pluralidade do mundo.

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