Quando a ilha da Madeira ainda não tinha aeroporto

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Se pensa que chegou à Madeira, engana-se. Esta é a ilha do Porto Santo - a única no arquipélago que possui aeroporto. A outra ilha, a Madeira, que é o vosso destino, só se encontra acessível pelo mar. Portanto, senhores passageiros, temos pela frente sete horas de aventura. Divirtam-se.

Estávamos em 1960. O jovem Agostinho Freitas frequentava o Golden Gate, o espaço de convívio na cidade do Funchal a que o escritor Ferreira de Castro chamou a "Esquina do Mundo". Um dia, por acaso, numa troca de chávenas de café, um amigo traz-lhe a notícia. Ali mesmo ao lado havia promessa de emprego. Coisa nova. A TAP, transportadora aérea nacional, acabara de abrir as portas no Funchal e admitia "funcionários" fluentes em francês e inglês.

Agostinho Freitas, aos 24 anos, nem sabia o significado da sigla. Mas arriscou.

"Fui. Fiz uma entrevista. E fiquei. Disseram-me que o aeroporto da Madeira só seria construído daí a quatro ou cinco anos e que um barco fretado pela TAP viria para a Madeira para trazer e levar os passageiros de e para o Porto Santo".

E assim começa uma aventura para muitos madeirenses e turistas...

A TAP vê-se obrigada a publicar um desdobrável informativo em banda desenhada como forma de amenizar o impacto. Uma acção de marketing à época inovadora e que hoje, provavelmente, seria um escândalo mediático. A páginas tantas é a própria companhia, em linguagem irónica, que sugere aos passageiros que se façam acompanhar por uma garrafa de whisky para aguentarem as ondas que os esperam sobretudo na célebre "travessa", viragem de norte para sul, influenciada pelas correntes do golfo, um tormento para quem pelo mar não morria de amores.

"É verdade que muitos turistas que aterravam no Porto Santo pensavam que já estavam na Madeira", recorda ao DN, entre risos. Com o número TAP 1705, Freitas ganha uma colega de aventura que, salvando os erros da memória, tinha o número 1704 ou 1703. Ela? Quem? Dolores, uma jovem madeirense, "muito bonita" por quem se apaixona nas horas de mar, atracção fatal das ilhas. O casamento acontece, uma união que perdura há décadas.

Tendo por companheiro o cacilheiro Lisbonense, inicialmente fretado para servir os clientes da TAP, ao fim de algum tempo acontece o inevitável. O navio passa a transportar passageiros locais, aqueles que só queriam ir ou vir do Porto Santo e que vêem uma oportunidade para fugir aos horrores das barcaças de transporte de cal, únicas então na ligação interilhas. Contudo, o navio mantém a "secção da TAP" com cadeiras de avião arrancadas a um SuperConstellation qualquer.

Freitas ingressa na companhia como despachante de tráfego mas trabalha no Lisbonense como comissário de bordo da TAP... de um cacilheiro. E a namorada Dolores no papel de hospedeira.

Saíam do Funchal por volta das 08.00, chegavam ao Porto Santo depois do meio-dia. Quando o mar permitia, o Lisbonense atracava no velho cais das colunas, demasiado pequeno para o calado do navio, mas mesmo assim era melhor do que nos dias em que as condições atmosféricas não permitiam a manobra. Nesses dias, ficava ao largo. Passageiros e bagagem eram literalmente lançados para uma pequena lancha da Capitania que os trazia para terra. Depois eram dirigidos por Dolores para um barracão de palmeiras onde lhes era distribuído o almoço TAP, que variava entre o guisado de carneiro ou de cabrito, que era o que havia em Porto Santo, seguindo só então para as instalações do aeroporto.

Quando o avião de Lisboa, um DC4 -mais tarde DC-6 e posteriormente o Caravelle - aterrava entre as 15.00 e as 16.00 na pista do Porto Santo, isto significava que os passageiros que tinham saído do Funchal às 08.00 da manhã só chegariam à Portela depois das 18.00.

Enquanto isso, Agostinho Freitas cuidava das bagagens.

"A maioria dos turistas oriundos da Europa desconheciam que ainda tinham uma aventura de mar pela frente. Algumas agências desconheciam, ou fingiam desconhecer, ou seja, omitiam, que o aeroporto era na ilha do Porto Santo e não na Madeira. Muitos turistas reclamavam e, posteriormente, queixam-se à TAP, mas era assim... alguns chegavam no final da viagem mais mortos do que vivos, o que era terrível", recorda

O bilhete do cacilheiro era um bilhete TAP com indicação manuscrita "BOAT TICKET" - código 0471 (uma ida) por 200 escudos e 0472 (ida e volta), por 400 escudos mais umas taxas.

"Fizesse bom ou mau tempo, eu tinha de emitir os bilhetes a bordo, escritos à mão, para além dos câmbios, porque poucos traziam escudos. Nu- ma ocasião saímos de Porto Santo e levámos sete horas e tal para chegar ao Funchal. O comandante teve de ma- nobrar o Lisbonense como se fosse um barco à vela. O cacilheiro era de fundo chato e não podia apanhar ondulação de lado porque corria o risco de virar. Nesse dia, as ondas eram superiores a sete metros. Saímos do ilhéu da Cal (Porto Santo), fomos para o lado das Desertas, daí o comandante enfiou-o em direcção a Machico e só depois para o Funchal".

Durante quatro anos, todos os dias, excepto no Natal, Agostinho Freitas cumpriu o seu dever, com muitas histórias para contar. Hoje, aos 71 anos, recorda ainda algumas situações.

"Quando chegávamos ao Funchal tínhamos de apresentar ao agente da PIDE que ia connosco a bordo a lista dos passageiros sem a qual ninguém podia sair. Um dia ele atrasou-se e o desembarque estava a demorar muito. Resolvi tomar a iniciativa e dizer: "Senhores passageiros, saiam". Depois apanhei um susto. Não repeti." Hoje ri-se. Mas só hoje. Depois, o Lisbonense passa a ter um concorrente: vindo dos Açores, o Cedros era um navio maior, mais confortável, gastava menos tempo de mar mas estava construído para navegar com carga. "Ainda colocaram umas toneladas de pedra nos porões mas insuficiente para criar estabilidade. Balançava muito." |

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