Quando a ficção de Verne foi superada. Nellie Bly, a jornalista que volteou o mundo em 72 dias

Aventureira, repórter, viajante, a vida da norte-americana Nellie Bly ofereceu matéria tão suculenta quanto os artigos que escreveu ao serviço do jornal <em>New York World</em>. Nellie superou a ficção do francês Júlio Verne ao completar uma volta ao mundo em 72 dias, estabelecendo um novo recorde.
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Na segunda metade do século XIX, uma editora nova-iorquina, fundada na década de 1850, inovava nas áreas dos livros para a infância e jogos de tabuleiro, ao utilizar novas tecnologia de impressão. Na época, a McLoughlin Brothers convidou os norte-americanos a recriarem sobre um tabuleiro de jogo, as sortes e azares de uma jornalista, aventureira, industrial e escritora que, em 1889, concretizou a volta ao mundo mais rápida até então, ao percorrer os mais de 40 mil quilómetros do perímetro terrestre em 72 dias.

Sobre o cartão do jogo da McLoughlin Brothers evoluíam dois peões obedientes às pontuações alcançadas pela dupla de jogadores. Os avanços e recuos no jogo faziam-se sobre um padrão espiralado com 72 casas, cada uma representando uma etapa da jornada mundial. Impressos no tabuleiro, o busto do escritor francês Júlio Verne, um navio a vapor, um comboio, a baixa da Manhattan e uma jovem. O jogo recebeu o nome da figura que o inspirou: Volta ao Mundo com Nellie Bly.

Verne, autor do livro A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873) servira de mote a uma viagem que, por mais de dois meses, atraiu a atenção dos norte-americanos. Uma repórter de 25 anos desafiara o jornal onde laborava a apoiar o périplo mundial que recriaria a ficção de Verne protagonizada por Phileas Fogg e Passepartout. Nellie propunha fazer mais do que aqueles dois personagens, ao bater o recorde mundial de circumnavegação do globo terrestre em 72 dias.

Quando partiu de Nova Iorque, em novembro de 1889, a repórter trazia uma história profissional de sucesso e superação que começara num outro estado, a Pensilvânia, perto de duas décadas antes. O folhetim de vida de Nellie envolveu a reivindicação de direitos para as mulheres, a cultura dos povos nativos mexicanos, reportagens sob disfarce em hospícios, entrevista a uma serial killer e artigos escritos na Frente Oriental no decorrer da Grande Guerra.

Nellie, nascida Elizabeth Cochran em 1864 no estado da Pensilvânia, cedo revelou a têmpera que a levaria às primeiras páginas dos jornais. Ainda no início da década de 1880, indignou-se ao ler uma crónica no jornal local, o Pittsburgh Dispatch que apontava o caminho para as jovens da época: parirem e cuidarem da casa. Sob pseudónimo, Elizabeth escreveu uma acesa resposta em defesa do papel da mulher na sociedade. Prosa que agradou ao editor do jornal que convidou a autora da peça a revelar-se e a apresentar um artigo. Assim se fez, com Elizabeth a escrever uma peça sobre o impacto do divórcio na vida das mulheres. Elisabeth conseguia um lugar na redação do Pittsburgh Dispatch, embora com os constrangimentos que aquele século XIX impunha a uma mulher a laborar num meio pequeno. Elisabeth teria de trabalhar sob pseudónimo. No futuro, assinaria como Nellie Bly, em alusão a Nelly Bly (o "ie" em substituição do "y" deveu-se a um erro de transcrição do editor do Pittsburgh Dispatch), cantiga do compositor da Pensilvânia Stephen Foster, autor com cantigas de sucesso, como o tantas vezes trauteado, Oh! Susanna. Tema de 1847, associado a espetáculos de menestréis, teatro popular de natureza racista.

Já como Nellie Bly, a repórter deteve-se na condição das mulheres operárias, o que levou a uma reação dos patrões e a recondução da jornalista para as páginas de moda, sociedade e jardinagem. Secções que deixavam um travo insípido em Bly. Aos 21 anos, a jornalista sugeriu uma reportagem no México. Nellie queria escrever sobre as tradições e costumes dos povos locais. Fê-lo durante seis meses, até ao abandono do país centro-americano em fuga, face ao risco de prisão, após criticar a ditadura de Porfírio Diaz.

A partir de 1887, Nova Iorque escreveria os capítulos seguintes na vida de Nellie. Nas páginas do jornal New York World, de Joseph Pulitzer, a jovem repórter alertou para as condições desumanas no hospício para mulheres da Ilha Roosevelt. Do artigo resultaria o livro de 1887 Dez Dias num Manicómio. Bly imiscuíra-se na instituição psiquiátrica disfarçada de doente mental para perceber os maus tratos a que eram sujeitas as mulheres ali internadas. No seguimento deste artigo, Nellie viria a entrevista Lizzie Halliday, serial killer condenada à morte, embora mais tarde com a pena comutada para internamento num hospício.

O ano de 1889 inscreveria o nome da Nellie Bly na lista das grandes viajantes. Com a chancela do New York World, a repórter partiu para o seu périplo mundial de 72 dias. Objetivo alcançado após uma viagem que conduziria a jornalista dos Estados Unidos a Inglaterra, depois França - onde conheceu Júlio Verne - Sri Lanka, Singapura, Hong Kong, Japão, para regressar ao país natal numa corrida desenfreada de costa a costa a bordo de um comboio fretado pelo New York World. Jornal que ao longo dos 72 dias manteve acesa a chama da aventura com um concurso que oferecia uma viagem a Paris. Para isso, tinham os leitores de acertar no dia, hora e minuto exatos da chegada de Nellie a Nova Iorque. A jovem não corria sozinha. Em sentido contrário ao redor do globo, a jornalista Elizabeth Bisland procurava feito idêntico ao serviço da revista Cosmopolitan.

Aos 25 anos, Nellie deixou o jornalismo para se fazer novelista nas páginas do jornal New York Family Story Paper. Na década de 1890, encontramo-la a administrar uma fábrica de recipientes em aço, após a morte do seu marido, o milionário Robert Seaman com quem se casara em 1895. Anos mais tarde a fábrica entrava em falência. Nellie regressou às reportagens. Cobriu a Frente Oriental durante a Primeira Guerra Mundial e o movimento sufragista norte-americano. Elizabeth Cochran Seaman morreu em Nova Iorque em janeiro de 1922 de pneumonia.

No ano de 1889, duas mulheres, ambas repórteres, afadigavam-se em contrarrelógios ao redor do mundo. Se a Nellie Bly cabia uma corrida de oeste para leste ao serviço do New York World, já Elizabeth Bisland procurava alcançar a meta ao viajar de leste para oeste, enviada pela revista Cosmopolitan. Ao contrário de Nellie que desconhecia a marcha de Bisland, a segunda deixara Nova Iorque informada do objetivo da concorrente. Após um périplo pela América do Norte, Pacífico, Ásia e Europa, Elizabeth perdeu o navio a vapor Ems que a levaria ao destino. A bordo do lento Bothnia, a jornalista da Cosmopolitan completou a sua volta ao mundo em 76 dias.

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