E m maio de 1856, David Livingstone, missionário e viajante, chegou à boca do grande Zambeze, no oceano Índico. Tendo em conta que partira de Luanda, no Atlântico, o escocês palmilhante acabara de cumprir um feito fantástico. Atravessou África em largura - de costa a costa, juntando por terra o Ocidente com o Oriente. De forma pessoal e documentada, Livingstone foi o primeiro. Mas terá sido mesmo assim?.Não foi. O escocês teve duas poderosas instituições ao seu serviço, a London Missionary Society e a Royal Geographical Society, promotoras do imperialismo britânico. Um dia, um jornal nova-iorquino, o New York Herald, mandou o repórter Henry M. Stanley à cata da lenda viva (depois de promover a suspeita de que já morrera). Entre cubatas, no meio da selva, o jornalista encontrou o missionário e lançou-lhe a pergunta engatilhada: "Doctor Livingstone, I presume?" Presumia-se bem, era ele. Manchetes!.A lenda acabou por morrer ainda mais famosa e foi sepultada na Abadia de Westminster - ser o primeiro a atravessar África deu-lhe o panteão. Afinal, ele era de um imperialismo que não se escondia. Outro, o português, sabendo-se mais pequeno, fazia as aventuras, mas guardava-lhes segredo. Por isso, quando Francisco José Lacerda de Almeida partiu para a Zambézia, Moçambique, nomearam-no governador dos Rios de Senna, talvez para esconder o facto principal: ele era geógrafo..Lacerda, o "doutor Lacerda", desembarcou em Quelimane em 1797 - reparem, 59 anos antes de Livingstone lá chegar. Ele era brasileiro, licenciado no primeiro curso de Matemáticas de Coimbra, ciência com o objetivo prático de determinar a posição dos astros e das fronteiras. Ciência importante quando tantos países novos se desenhavam..E, de facto, tendo voltado ao Brasil, ele passou dez anos a marcar as fronteiras orientais do Mato Grosso. Já membro da Academia das Ciências de Lisboa, foi convidado por Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha, para a citada aventura africana. E que aventura era essa? Sousa Coutinho era um herdeiro espiritual do marquês de Pombal, um estadista de visão (é, houve), e filho de Inocência de Sousa Coutinho, talvez o maior governador português que Angola teve. No virar daquele século, Portugal pensava em unir as duas maiores regiões africanas onde tinha vilas e entrepostos comerciais..Uma viagem de costa a costa, entre Angola e Moçambique, impunha-se e era essa a missão de Lacerda. Escolheu-se a direção Índico-Atlântico porque se presumiu que os grandes rios angolanos (Congo, Cuanza, Cunene...) eram as melhores vias de penetração, faltava era conhecer-lhes as nascentes. O plano Lacerda era ir por terra, de Moçambique, atingir as nascentes, no interior, e com os rios chegar-se melhor ao litoral..Deixaram-se enganar pelo grande Zambeze, que nascia no centro de África, atravessava brevemente o leste angolano, voltava a sul e rumava para o Índico (o sentido contrário do plano português). Só a experiência que iria dar aquela viagem perdida de Lacerda permitiu a Livingstone as informações, meio século depois, que lhe trouxeram a glória. E lhe outorgaram uma prioridade que ele não teve..O doutor Lacerda entrou pelo sertão moçambicano, foi para Tete e preparou uma caravana. Em 1798, partiu para oeste, fez mais de 1300 quilómetros e chegou ao Cazembe, hoje Zâmbia, perto do lago Mweru. O lago pertence à bacia do rio Zaire (ou Congo) mas seria mau conselho ir por aí. O Zaire dá uma volta imensa, por florestas fechadas, e tem quedas perigosas antes de chegar ao Atlântico. Mas isso não chegou a ser alternativa, Lacerda adoeceu e morreu no Cazembe..O grande explorador Richard Burton (1821-1890) considerou as notas deixadas pelo brasileiro como as primaciais para se ter conhecido o coração de África. Enterrado o doutor Lacerda, parecia morto o plano da costa a costa. Oh, homens de pouca fé, então não veem dois homens, em sentido contrário, mas com o mesmo objetivo?!.Logo em 1802, um negro e um mestiço, os angolanos Pedro João Baptista e Amaro José, deixaram a Feira de Cassange, na região de Malanje, em Angola. Eram pombeiros, comerciantes do mato, habituados à troca da cera e da borracha, dos sertões, pelo sal, do litoral. Deitaram-se ao destino da viagem africana costa a costa mas, como narrou Pedro João, "andando com o sol pelas costas", para oriente. Em 1806, eles chegaram ao Cazembe, onde o rei local os prendeu. Como se o coração de África quisesse deter o sonho da África litoral aberta ao mundo....Ao fim de vários anos, os dois angolanos foram libertados. E continuaram: em 1811, chegaram a Tete. Fizeram o depoimento da sua "derrota", palavra que vem também de "de rota" - trajeto, viagem. São minuciosas as suas indicações de rios, distâncias, povos, costumes e comidas. A Viagem dos Pombeiros (1802-1811) foi anotada pelo então governador dos Rios de Senna, Constantino de Azevedo, sucessor de Lacerda. Depois, os dois angolanos deram meia-volta e caminharam no caminho do Sol. Voltaram a casa, a pé..Em janeiro de 1815, de São Paulo da Assunção de Luanda, o governador de Angola escreve a honra que é a sua porque "vão embarcados na fragata Príncipe Dom Pedro os pombeiros Pedro João Baptista e Amaro José (...) a cujas diligências e fadigas se deve o êxito deste trabalho, e levam os roteiros da jornada". Isto é, as notícias e saberes da viagem que só meio século depois seria cumprida por David Livingstone..A fragata Príncipe Dom Pedro foi para o Rio de Janeiro, onde estava a corte portuguesa. Os pombeiros foram agraciados pelo príncipe regente D. João IV com vários favores. Pedro João Baptista foi feito capitão e voltou ao seu comércio de pombeiro, e de Amaro José, como é próprio dos viajantes desconhecidos perdeu-se-lhe o rasto. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) não tem verba para filmes?