"Putin sabe que o único ponto em que a Rússia continua a ser a maior potência mundial é na capacidade nuclear" 

Comentador da SIC, Germano Almeida é autor de cinco livros sobre presidentes dos EUA (o mais recente é <em>Joe Biden - o Homem e as suas Circunstâncias</em>, Prime Books, 2021). Ao DN falou da escalada inevitável do conflito na Ucrânia e de como a Administração Biden ganhou credibilidade ao acertar em cheio na denúncia dos planos de Putin de invasão total.
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Apesar das dificuldades no terreno na invasão da Ucrânia, a Rússia não parece disposta a recuar. O próximo passo de Putin pode ser uma escalada para uma guerra mais destruidora e mortífera?
Já está a ser. Esperam-se ataques ainda mais violentos, a gerar mais mortes e destruições, com uso de armas mais pesadas. A Rússia precisa de selar o controlo de cidades como Kherson, Mariupol, Cherniiv ou Karkhiv para prepararem o ataque a Kiev numa posição mais confortável. Putin não vai parar, porque sabe que os riscos de recuar seriam muito maiores. Voltar atrás não parece uma opção. Se parece claro que o plano inicial russo de tomar Kiev em poucos dias falhou completamente - pela subestimação da resistência ucraniana e ainda pela incapacidade de prever a rápida reação internacional -, o problema é que a supremacia militar é tão grande que não se vê outro destino para este conflito que não seja uma vitória da Rússia nos combates pelos vários pontos estratégicos do território ucraniano. Vladimir Putin não vai parar até depor Volodymyr Zelensky e destruir a democracia ucraniana. As dúvidas surgirão depois: se o exército russo tem força para destruir a Ucrânia, o mesmo exército não tem capacidade nem conhecimento para administrar o poder de uma Ucrânia ocupada.

Tem-se falado em ameaça nuclear. É uma forma de manter a NATO, incluindo os EUA, em sentido ou é uma possibilidade real?
A ameaça nuclear não pode ser afastada. No entanto, o que explica o aparecimento desta cartada numa fase tão precoce é, essencialmente, a necessidade que Putin sentiu, logo ao quarto dia, de travar a ideia que dominava nas opiniões públicas em todo o mundo de que Zelensky tinha sido o grande herói da primeira noite de ameaça a Kiev, ao ter recusado a oferta americana de resgate e pela frase que ficará para a história desta guerra: "Não preciso de boleia, preciso de munições". De tal modo cresceu a perceção de que a Rússia estava com problemas logísticos no terreno e que tinha falhado o plano inicial que Putin precisou de lançar uma "bomba" comunicacional, no sentido de voltar a controlar o processo - daí ter falado na passagem para estado de prontidão das armas nucleares. Sabia que, ao fazê-lo, conseguiria voltar a liderar o fluxo comunicacional, através do medo. Outra coisa é percebermos que, na lógica russa, faz todo o sentido usar esse trunfo retórico. Numa Rússia que é apenas a 11.ª economia mundial, com graves complicações internas e um problema reputacional para várias décadas por esta guerra injustificada e mal calculada, Putin sabe que o único ponto em que a Rússia continua a ser a maior potência mundial é na capacidade nuclear. Devemos equacionar todas as possibilidades. Nos dias que antecederam a invasão, a Administração Biden fez saber que antecipava três possíveis formas dos russos atacarem a Ucrânia. A primeira eram ciberataques em larga escala, para neutralizar a capacidade da Ucrânia funcionar normalmente e comprometer o fornecimento de energia (já aconteceu). A segunda era uma operação militar por via terrestre e aérea (está a acontecer). E a terceira era o uso de armas nucleares. Esperemos que essa terceira nunca venha a acontecer.

Biden fez esta semana o seu primeiro discurso do Estado da União. Este conflito na Ucrânia é positivo para a imagem do presidente americano?
Seria negativo, pela opção estratégica de fletir para o Indo-Pacífico (confirmada pelo AUKUS, grande acordo de cooperação militar e tecnológica entre EUA, Reino Unido e Austrália), pós saída humilhante do Afeganistão. Mas este "regresso" à Europa reforça a aposta correta que Biden fez ao voltar a olhar a NATO como uma prioridade, depois dos anos Trump. A NATO redescobriu o seu propósito com a invasão russa da Ucrânia e a resposta firme e rápida de defesa dos países Bálticos tem enorme crédito americano.

Depois da retirada caótica do Afeganistão, este é o grande desafio internacional desta Administração Biden. É a oportunidade do presidente mostrar aos republicanos, sobretudo os trumpistas, que não é um líder fraco, como o acusam de ser?
Sim, claramente. Os EUA estão a gerir bem esta guerra. Biden foi claro a explicar que não pode enviar tropas americanas para combater os russos na Ucrânia "porque isso seria a guerra mundial". Mas está a ser ainda mais claro a precaver a ameaça russa de países NATO na fronteira do conflito. A Administração Biden ganhou credibilidade ao acertar em cheio no alerta público sobre os planos de Putin de invasão total. Por outro lado, o momento atual é a confirmação da leitura de Biden ao ter eleito como um dos pontos fortes do seu mandato presidencial a defesa das democracias liberais para travar a ascensão das autocracias. O que está em causa em tudo isto? Três dicotomias que Biden bem definiu no recente discurso sobre o Estado da União: Democracia vs Autocracias; Liberdade vs Tirania; Paz vs Insegurança pelo autoritarismo agressivo. Não pode haver precedentes que sinalizem aos líderes autoritários que vale a pena romper com qualquer regra internacional. Se Putin tiver sucesso, não será só a Ucrânia que verá os seus sonhos destruídos e a sua integridade violada. Seremos todos nós, que desejamos continuar a viver num mundo de liberdade, segurança e bem-estar que seremos atingidos. Vamos perder todos. O que acontecer na Ucrânia não ficará na Ucrânia.

Ficou surpreendido com a escala da invasão da Ucrânia?
Com a invasão não fiquei: dei sempre um crédito suficiente aos serviços de informação de EUA e Reino Unido para nunca achar que estivessem totalmente enganados. Foram alertas demasiado claros, muito repetidos e muito sustentados. Achei até um pouco estranho como tanta gente ignorou esses avisos, confesso. Já quanto à dimensão da invasão e a opção de Putin de atacar toda a Ucrânia de uma assentada, admito que não esperava.

Qual será o objetivo final de Putin? As suas ambições imperialistas podem alastrar a outros países da ex-URSS?
Putin quer toda a Ucrânia. Quer fazer da Ucrânia ocupada o espaço alargado, a três (com Rússia e Bielorrússia). da demonstração da tal "Grande Rússia" exposta no discurso de 22 de fevereiro. Quer projetar, ao limite das fronteiras com os países da NATO, ameaça real à Moldávia (onde já tem a Transnístria e onde facilmente chegará se conquistar Odessa e, assim, fechar o corredor sul e a passagem do Mar Negro) e eventualmente também à Geórgia. Não se imagina que cometa o erro de atacar um país da NATO (apesar dos receios de Polónia, Letónia, Lituânia, Estónia, Eslováquia ou Roménia), mas agitação desse fantasma de guerra total interessa-lhe neste momento. E quer explorar, ao limite, a coerção à Finlândia e à Suécia, de modo a colocá-las num dilema existencial: entrar na NATO para estar a salvo de ataque russo ou aceitar a ameaça de não entrar, para não atiçar o "urso" de Moscovo?

Zelensky tem-se revelado um líder capaz de unir o povo em tempo de guerra. Ficou surpreendido com este lado do antigo ator e com a forma como o povo ucraniano aderiu ao esforço de guerra?
Sim, claro. Acho que ficámos todos. Um ponto crucial para percebermos o que se poderá passar passa pelos próximos passos de Zelensky. Vai acabar por aceitar uma espécie de "governo no exílio", com ajuda americana para o resgatar antes que os tanques russos entrem em Kiev? E que comportamento terão as chancelarias ocidentais num quadro desses: assumem Zelensky como presidente legítimo no exílio e ignoram uma futura Ucrânia ocupada?

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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