Saiu da rua para os apartamentos mas problemas são iguais

O Ninho apoia mulheres que são vítimas. Há quem defenda que a maioria dos trabalhadores do sexo são-no por opção
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Uma violação aos 13 anos, pelo próprio irmão, marca a entrada de Micaela (nome fictício) na prostituição. Uma gravidez precoce, "vergonhosa", fizeram que a família a levasse do Alentejo para Lisboa, para casa de uma tia. Quando teve o filho, recebeu a visita da mãe, pensava ela que seria para a ajudar. Não. Foi para entregar "o menino" para a adoção. Quis regressar ao Alentejo, pedir explicações, mas, sem dinheiro, ficou pelo caminho a troco de uma boleia. Foi parar a uma casa de alterne.

Esta é uma história de vida, de violência, e que serve de exemplo a quem vê a prostituta como uma vítima. Mas há outras histórias, argumenta quem a defende como uma profissão. Hoje é o Dia Internacional contra a Violência sobre os Trabalhadores do Sexo, uma data que já de si é uma posição.

Casa de alterne, bares, uma rua ou uma esquina, por tudo isso Micaela passou. É uma das oito mil mulheres que procuraram a associação O Ninho para sair da prostituição e que esta instituição apoiou desde que foi criada, faz 50 anos para o ano, adiantou ao DN Conceição Mendes, a coordenadora desta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS).

Meio século a observar vidas muito semelhantes, de violência, explica a assistente social que convive com a prostituição há 33 anos, experiência que a leva a criticar os defensores da "prestação de serviços sexuais" como uma profissão. "Não defendo de maneira nenhuma que o poder legitime alguém que compre uma pessoa como se de um objeto se tratasse. Conhecemos muitas mulheres, as que estão na rua, nos bares ou em apartamentos, que cobram 20 euros ou 500 euros, todas passaram por grandes situações de violência e, em alguns casos, irreversíveis, com uma autoestima baixa e que demoram tempo a recuperar. Por isso, O Ninho sempre lutou para que não nos fosse dado um prazo para deixarem de ter apoio", argumenta Conceição Mendes. A associação tem um lar para dez mulheres e os filhos, 12 mulheres a trabalhar nas oficinas e outras 12 na jardinagem, devido a um protocolo assinado com a Câmara Municipal de Lisboa.

"A história de vida de quem está na chamada prostituição de luxo é igual, ganham mais porque a prática sexual é mais cara, mas também gastam mais para se poderem manter num bar de luxo. O que muda é o local e o cliente, não é a origem social. E todas dizem que começaram pensando que seria por pouco tempo, nunca que foi por gostarem", sublinha Conceição Mendes. E que, quando se fala em "ganhar dinheiro fácil", o mais correto seria "gastar dinheiro facilmente". Ganham ao dia e pagam ao dia, a casa ou pensão, a ama dos filhos, a comida, as roupas, etc.

Micaela conseguiu sair deste mundo, tem alojamento e uma remuneração mensal, falta-lhe um último passo para se tornar definitivamente autónoma. Isto depois de anos que "andou na vida" e que resumia: "O meu corpo está aqui, mas a minha alma não."

Saiu deste mundo numa altura em que as formas da prostituição se alteraram, além de que não se sentia à vontade com as novas tecnologias, meio que ampliou a difusão da atividade. E que, segundo a antropóloga Alexandra Oliveira, tem "implicações a nível do trabalho: uma maior autonomia e uma maior proteção". Apareceram primeiro os "anúncios nos jornais e depois na internet", o que potenciou a passagem do exterior para o interior. "Estimamos que, atualmente, a maioria da prostituição não esteja na rua mas num contexto interior e, depois, as novas tecnologias permitem que as pessoas estejam resguardadas e tenham autonomia", explica a investigadora.

Nos anos 80 do século passado, a atividade tinha passado por uma outra mudança com a entrada de toxicodependentes e, posteriormente, de estrangeiros. Isto fez que a prostituição se tornasse mais heterogénea e que Alexandra Oliveira a defenda como uma profissão. "Não como as outras, mas com os mesmos direitos", não a existência de uma lei. "O que demonstram os estudos, os meus e os de outros investigadores, é que as pessoas podem e optam por fazer esse trabalho."

Diferentes perfis

A investigadora, que passou cinco anos a observar os trabalhadores do sexo - na maioria mulheres mas também transgéneros ("num número não negligenciável") e alguns homens -, sublinha os diferentes perfis de quem se dedica à prostituição. "Há uma grande complexidade no trabalho sexual e uma grande diversidade de pessoas. Não corresponde à realidade a ideia de que as pessoas que estão nesta profissão são vítimas, que são forçadas, coagidas e que estão contra a sua vontade. Há muitas pessoas que estão coagidas, mas a maioria das pessoas estão por sua livre vontade", garante.

Alexandra Oliveira tem um amplo trabalho no terreno e que constitui tema da sua tese de doutoramento: "O mundo da prostituição de rua: trajetórias, discursos e práticas." Uma etnografia sobre a realidade do Porto, escrita na primeira pessoa e que sublinha: "Os percursos das pessoas que se prostituem são diversos e não são lineares, nem predeterminados por qualquer destino ou especificidade. Na diversidade de trajetórias encontrei algumas características que se repetem, permitindo formar subgrupos mas também traços particulares de cada indivíduo."

Vidas na Raia é o livro que resulta de uma investigação realizada junto às cidades transfronteiriças, entres os autores está Fernando Bessa Ribeiro. Encontraram "mulheres portuguesas mas também muitas estrangeiras a trabalhar na prostituição, nomeadamente da América Latina, em particular do Brasil".

Mulheres que entrevistaram tanto na "prostituição "mais antiga" de rua, de estrada, maioritariamente praticada por portuguesas", como "nas casas de alterne e em apartamentos, na maioria estrangeiras, geridas por pessoas que disponibilizam quartos para levarem os clientes, na maioria homens".

O cientista social defende alterações legislativas que permitam diversos enquadramentos, já que há quem não queira assumir uma exposição pública da sua atividade. Resume: "Os detalhes legais são secundários, o que é fundamental é promover uma discussão no país que dê resposta à atual situação e responda ao que é melhor para estas mulheres."

Diferentes situações, trajetórias de vida e que influi a forma como veem a atividade.

Alexandra Oliveira falou com esses trabalhadores do sexo, cujos testemunhos publica na sua tese e que vão da versão negativa da situação à mais positiva. Dá o exemplo de Carla, "uma mulher com um discurso muito negativo no que concerne à vivência da prostituição, e que salienta, especialmente, a vergonha que tem em estar na rua a angariar clientes". Lamenta-se muito frequentemente e quer deixar a atividade, mas que no desenrolar da investigação ressaltam "racionalizações e estratégias que revelam contradições".

Exemplos: "Não sei se é da idade... tenho vergonha, não consigo estar ali parada. Não é só da idade, eu sei porque é: é por causa da minha filha [19 anos]. Tenho medo que ela passe e me veja... os vizinhos... se calhar é paranoia minha... porque até tenho boa relação com as pessoas..."

Rosana, uma transexual de 44 anos, encontra-se no outro extremo. Tinha acabado de deixar a prostituição quando foi entrevistada. "Defende que juntava o útil ao agradável e que o fazia sempre por prazer. Na entrevista formal, acabam por ser referidas situações reveladoras de que a sua experiência nem sempre foi positiva, aparecendo também racionalizações para ultrapassar os aspetos mais desagradáveis." Veja-se: "Adorava ser prostituta..., estar numa casa, numa montra na Holanda. Os meus clientes favoritos, os 131. (...) Como eu gosto de sexo a melhor maneira de apanhar sexo é a prostituição."

Regulamentação na gaveta

O Dia Internacional contra a Violência sobre os Trabalhadores do Sexo nasceu em 2003 nos Estados Unidos e é um tributo às mulheres mortas (48) em Seatle, na maioria trabalhadoras do sexo. Ridgway, o homicida, foi condenado à prisão perpétua.

Um guarda-chuva vermelho simboliza este dia, marcado por debates, iniciativas culturais, ações de protesto contra a violência exercida sobre estes trabalhadores e campanhas reivindicativas dos direitos humanos.

Direitos que também são reivindicados em Portugal, sem que se tenha avançado para a criação de uma estrutura que as represente ou que se regulamente a atividade. O mais perto que se teve desse objetivo foi através do Bloco de Esquerda, que incluiu o tema no programa eleitoral mas ainda sem apresentar propostas legislativas. A posição atual é a de que é preciso um amplo debate.

A antropóloga encontra algumas razões para que não existam iniciativas, políticas ou sindicais. "Existem vários fantasmas sobre a prostituição, as pessoas sentem--se discriminadas, falta organização coletiva. Há várias causas para que isso aconteça, mas a questão do estigma é muito importante, as famílias e os amigos não sabem o que elas fazem e elas não se vão expor. Depois, há uma grande percentagem de imigrantes, que não se identificam com as trabalhadoras do sexo, pensam sempre que é uma situação transitória. E tem também que ver com o próprio grupo, têm uma lógica comercial e onde não funciona a solidariedade. Além de que falta consciência política para abordar este tema."

A nível europeu, os países têm optado por diferentes modelos, uma vez que na Europa há quem opte pelo abolicionismo, como Portugal, que não criminaliza a prestação dos serviços sexuais mas quem a fomente, o lenocínio. Outros penalizam os clientes, o chamado modelo nórdico, ou os que regulamentaram a profissão, como a Alemanha.

Conceição Mendes defende a atual situação normativa e, a haver regulamentação, seria para penalizar os clientes, como "uma forma de sensibilizar a população". Argumenta: "Em Portugal não há um vazio legal, as mulheres não são presas, têm direito aos cuidados de saúde e à proteção. O Ninho deu o seu contributo para que isso acontecesse, até aí as mulheres eram presas e o que se provou é que não ajudava em nada."

Foi em 1983 que a prostituição se tornou legal no país, com alterações legislativas no final do século passado e início deste, para criminalizar a prostituição infantil, o lenocínio ("fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou de atos sexuais de relevo") e o tráfico de seres humanos para exploração sexual.

Alexandra Oliveira responde que a realidade documentada pelo O Ninho é muito particular, pois são mulheres que procuram a associação para sair do meio. "Há muitas situações. Há um grupo em que se destaca uma capacidade financeira e que vão para a prostituição com o objetivo específico [ganhar dinheiro para uma casa e/ou um carro] e que o conseguem, por exemplo as imigrantes. Estão cá durante algum tempo e conseguem esse dinheiro. E há uma prostituição de sobrevivência, prostituem-se para fazer face às necessidades, como os toxicodependentes."

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