O corredor é frio, gelado, como os cadáveres que António Nunes transporta todos os dias. Entre as enfermarias onde morreram, as câmaras frigoríficas e a casa mortuária onde serão entregues às famílias, já preparados para o funeral. O corredor do piso 02 do Hospital de Santa Maria é dado a mitos, um lugar obscuro que poucos conhecem - até se diz que ali viveu um casal de médicos durante anos. Um cenário cinematográfico, repleto de tubagens, longo, inóspito, propício à gravação de filmes de ficção científica como Aliens ou à cena em que o protagonista de Oldboy luta com um bando de criminosos..Há 24 anos que António Nunes (63) o percorre com os seus mortos. Já houve tempo em que o corredor praticamente não tinha luz, estava degradado em toda a sua extensão... assustador. E ele lá vinha a empurrar as macas, sempre a transportar alguém sem vida, a apanhar sobressaltos de morte: "Às vezes até os cabelos dos braços ficavam em pé. Apanhava com cada susto! Os restaurantes que ficam por cima deixavam aqui restos de comida e isto estava cheio de ratos enormes e gatos.".Só isso o assustava. Com os mortos lida com uma naturalidade impressionante. Não falam, não reclamam, justifica. Teve de se habituar a mexer nos corpos com frieza, como se estivesse a fazer a mais vulgar das funções. Só assim quem trabalha na casa mortuária consegue manter a sanidade mental. "Um dia, por um problema, fui ao psicólogo e ele perguntou-me se sonhava com os mortos, se via a cara deles. Disse-lhe que não, que nunca tinha acontecido.".Mas admite que é um trabalho "pesado", física e psicologicamente e, por isso, está atento a sinais que qualquer outro trabalhador da morgue (que coordena) possa denunciar para os reencaminhar para um psicólogo..No tempo em que trabalhou nas urgências, António também lidava com mortos, só que estava habituado a despi-los, a cortar-lhes a roupa; não a vesti-los e a prepará-los para serem entregues condignamente às famílias. Para os dez funcionários da morgue do Hospital de Santa Maria, o trabalho já é tão rotineiro que conseguem preparar um cadáver - lavá-lo, limpá-lo ou aspirar as cavidades nasais, orais e ouvidos, tapar-lhe os orifícios, penteá-lo e vesti-lo - em dez ou 15 minutos. Os homens demoram mais tempo, porque têm de lhes fazer a barba. Mas se forem dois a tratar do corpo o processo ainda é mais rápido.."As crianças são o que custa mais".O trabalho, que tanta frieza exige, obedece a uma série de critérios. Quando vão a uma enfermaria buscar um falecido, é preciso questionar a enfermeira sobre se haverá lugar a autópsia clínica ou médico-legal (nesse caso seguirá para o Instituto de Medicina Legal), se haverá recolha de córneas e se está disponível o certificado de óbito. Caso haja recolha de córneas, a cabeça do defunto terá de ser elevada a 45 graus..Os cadáveres vêm identificados com três etiquetas azuis: uma no braço, outra no pé e outra por fora do saco branco onde são transportados nus, enrolados num lençol. Quando estão nas câmaras, uma dessas etiquetas é colocada da parte de fora. E se for o caso de um corpo doado para estudos científicos, essa mesma informação também está exposta. Ao todo, são sete câmaras frigoríficas - seis com quatro tabuleiros e uma com dois tabuleiros, para crianças..António Nunes faz questão de frisar que nunca naquela casa mortuária se trocaram corpos. E é por isso que discorda que sejam os agentes funerários a fazer o reconhecimento dos mortos. Uma vez, só para provar que não deveria ser assim, colocou um chapéu de outra pessoa num dos corpos. "O agente funerário disse "sim, é o senhor do chapéu" e tivemos que lhe explicar que não era.".Apesar da frieza com que desempenha o seu trabalho nunca se emocionou, questionamos? "As crianças são o que custa mais. Sou pai, sou avô... Há mesmo quem não as consiga vestir, só por grande sacrifício. E os pais quando aqui vêm falam com os filhos, como se estivessem vivos...".Um morto é um anónimo. António olha-lhes para a cara, para os olhos, mas não sente nada, garante. Não se deita a imaginar que história de vida possam ter tido, quem deixam cá ficar. Se assim fosse, diz, não conseguiria desempenhar aquela função..Mas há as surpresas, terríveis. Há cerca de 18 anos, teve de preparar o corpo de um colega que acabou por estrear as instalações renovadas da morgue. Há tempos foi buscar um corpo e quando lhe olhou para a cara viu o rosto de um amigo. "Tenho de aguentar.".Canalizadores: "Se isto arrear, para tudo".É através do corredor do 02 que chegamos ao Serviço de Instalações e Equipamento, já no 01, onde trabalham eletricistas, eletromecânicos, pedreiros... É lá que encontramos Fernando Mateus, 56 anos, coordenador da brigada de canalizadores. Uma tarefa invisível, indispensável ao funcionamento do Santa Maria, que consome mais água do que muitas cidades..O hospital é servido por quatro depósitos de água sempre em circulação - um de reserva e três em cada uma das torres. É daqui que saem os 30 metros cúbicos de água que são gastos por cada hora que passa - o equivalente a 720 mil de garrafas de litro por dia.."Se isto arrear, para tudo. Não há médicos nem enfermeiros que valham. Estamos a fazer que o hospital funcione. Estamos a trabalhar para o doente. Temos de dar condições para que eles possam cá estar", diz Fernando. E exemplifica com um acontecimento que os levou a trabalhar durante uma noite inteira para mudar um depósito de água do serviço de hemodiálise para que de manhã os tratamentos prosseguissem normalmente..O seu trabalho passa também por prevenir que a água que chega ao hospital em duas linhas da EPAL não é contaminada com a bactéria da legionela, através de uma técnica de cloragem da água..Há cerca de dez anos, conta Fernando, o rebentamento de um cano obrigou ao corte total de água. Foram chamados os bombeiros para abastecer, vieram primeiro com um carro, mas rapidamente perceberam que não tinham capacidade de resposta. Estiveram um dia inteiro com os tanques a bombar água para a central.."Isto é uma cidade em ponto pequeno. Não deve haver em lado nenhum quem consuma tanto como nós", justifica. O hospital, o maior do país, é realmente uma cidade: ali circulam cerca de 15 mil pessoas por dia e trabalham mais de seis mil funcionários, entre médicos, enfermeiros, técnicos e outras profissões "invisíveis", como a de Fernando ou a de António... ou outras que iremos conhecer..Fernando explica que, se os serviços não forem avisados, o hospital tem autonomia para oito horas sem estar a ser abastecido pela EPAL. "Se avisarmos, fazem como as pessoas em casa, gastam mais. Há um ano avisámos a pensar que tínhamos água até X horas e chegámos à conclusão de que, afinal, não podemos dizer nada.".Manter uma cidade destas a funcionar, ao nível do abastecimento de água e do saneamento básico, requer muito labor. E se não houvesse tanta falta de consciência, o trabalho da brigada de canalizadores poderia ser literalmente mais limpo. "Todos os dias temos de desentupir esgotos. Encontramos fraldas, compressas, luvas, esfregonas... . Isto origina problemas gravíssimos, chega a entupir todo um setor. Às vezes temos de andar de rastos, em espaços com um metro, metro e meio. Desculpe a expressão, mas é merda por todo o lado.".Há outros problemas, originados pelos visitantes do hospital: "Nas consultas externas, o roubo de torneiras e sifões para vender ao ferro velho é o prato do dia.".Costureiras: cuidam que a roupa não ande desmazelada.Naquele mesmo piso, num anexo separado do edifício principal, três mulheres - Fernanda, Balbina e Marisa - costuram todo o santo dia. Passajam lençóis, fazem bainhas a toalhas, cosem botões, arranjam pijamas e robes. Sentam-se às oito da manhã frente à máquina de costura e só dali saem às quatro da tarde. Sempre a coser. Para que "os doentes estejam compostos" e a roupa das camas em condições. As pilhas de roupa à sua volta fariam até a dona de casa mais dedicada fugir de susto..Não é um trabalho criativo, reconhecem. Logo elas que já estiveram na alta-costura ou na confeção de lingerie. Mas fazem-no com brio e com um autêntico sentido de poupança: se um lençol está rasgado e não tem solução, transformam-no num resguardo, se um pijama vem com a manga comprida muito rasgada, passa a ser de manga curta. Reaproveitar é a palavra de ordem..Três mulheres, três máquinas de costura e um rádio. Fernanda Gomes, 60 anos, prestes a reformar-se, não dispensa tê-lo por perto, vá para onde vá. Começou nestas lides da costura aos 14 anos porque não passou de ano. "Estava na escola a ver as árvores a abanar. O meu pai deu-me uma sova com a bengala do velho, do bisavô, e decidiu que eu iria trabalhar.".Aprendeu muito do ofício no ateliê de alta-costura de Sérgio Sampaio, no Saldanha. "Só trabalhávamos para as pessoas ricas, para as passagens de modelos. Depois veio o 25 de Abril e foi tudo para o Brasil e eu comecei a andar nas fábricas. A seguir veio a Zara, a Mango e as lojas de chineses e acabou-se tudo.".Foi para o Santa Maria há 18 anos, mas só há 14 está na costura. Quando diz que trabalha no hospital e fala do que faz, ninguém quer acreditar: "No hospital também há costura?", ouve com frequência..Há e representa uma economia considerável. Porque as três mulheres tratam daquelas montanhas de roupa como se fosse a das suas casas. Fernanda vai reformar-se, Balbina Leal, 64 anos, também. Resta Marisa Pereira, 51 anos. Agora, poucos sabem do ofício, "ninguém quer trabalhar nisto", e o mais certo é o hospital ter de recorrer à prestação de serviços externos - como já acontece, por exemplo, com as refeições, a lavandaria e a jardinagem..Balbina começou aos 14 anos a coser e há 20 que anda a costurar em hospitais. Trabalhou numa fábrica de confeções de homem em Vialonga, onde fazia fatos, blazers e gabardinas. Mas foi a fábrica da Triumph International que lhe deixou saudades: "Era um trabalho bonito, interessante. Aprendia-se muita coisa, trabalhávamos com máquinas computorizadas. Aqui não se aprende nada, mas também já estamos no final de carreira e não queremos aprender mais", graceja..Até pode ser um trabalho pouco criativo - onde só se usam linhas brancas e verdes para a roupa do bloco - mas as três costureiras desempenham-no com denodo. "A pessoa já está doente, se estiver com a roupa desmazelada ainda se sente pior. Estive a pôr botões numa braguilha, já viu se as calças chegassem sem botões ao doente? A pessoa ficava descomposta, assim fica com um ar cuidado.".Telefonistas: a primeira voz do hospital.A azáfama é grande no atendimento telefónico. "Hospital de Santa Maria, bom dia, fala a Rosário." "Hospital de Santa Maria, bom dia, fala a Teresa." São as donas das vozes, aquelas que tanta gente conhece sem nunca lhes ter visto os rostos. São o primeiro contacto de quem liga para o hospital, seja para marcar consultas seja por questões de emergência. Recebem centenas e centenas de telefonemas por dia - "às segundas-feiras chegamos a receber três mil", conta Rosário Araújo, 63 anos, 38 anos de hospital, sete deles nos telefones..É da central de telefones - onde também funciona um contact center - que são encaminhadas todas as chamadas. Quando Teresa Maria (68) ali chegou há 48 anos, ainda se chamava PBX. Era o tempo das cavilhas coloridas e alavancas, quando também recebiam e expediam telegramas, nomeadamente a avisar as famílias da morte de algum doente. Agora é tudo computorizado..O trabalho era mais interativo, pelas telefonistas passava todo o tipo de necessidades: "Ligue-me à casa mortuária, é preciso ir buscar um corpo"; "chame-me um eletricista", recorda Teresa, sempre contida nas palavras porque leva muito a sério a máxima de que as telefonistas não contam a ninguém as conversas que passam pela linha..Ainda hoje há pessoas mais solitárias, sobretudo idosas, que ligam. "Não querem nada de especial, conhecem o número. Tenho pena de não ter tempo para falar mais um pouco, porque são pessoas que estão sós", lamenta Rosário..Teresa atalha: "Não se pode perder tempo, a nossa prioridade é atender chamadas, uma pessoa pode estar em risco de morrer, pode ser uma criança.".Os telefones continuam a tocar, sem parar. Indiferentes ao trabalho invisível que faz o hospital funcionar, ao corredor do 02 ou às oficinas do 01, milhares de visitantes continuam a entrar diariamente pelo piso 1. A maior parte deles só sabe o nome de um médico.