No outono de 1984, uma hipnotizante fotografia publicada num jornal captou as atenções por este mundo fora. Mostrava um jovem que não parecia completamente morto nem tão-pouco inteiramente vivo. Estava vestido com roupa de aspeto arcaico e coberto por um invólucro de gelo. A parte branca dos olhos semiabertos apresentava uma cor semelhante à do chá. A pele da testa era de um azul-escuro (...) parecia uma mistura entre um extraterrestre de Star Trek e a vítima de uma maldição num filme de série B: não era propriamente alguém que se quisesse ter como vizinho". Margaret Atwood, romancista e ensaísta norte-americana dedicava, em 2004, as palavras aqui citadas à introdução do livro Congelados no Tempo (Frozen in Time: The Fate of the Franklin Expedition) reedição da obra de sucesso inicialmente lançada no ano de 1987, assinada a quatro mãos, pelo antropólogo forense Owen Beatie e pelo escritor John Geiger. O texto de Atwood, agora publicado no livro Questões Escaldantes, Ensaios e Textos Ocasionais (2004-2021), com a chancela da Bertrand Editora, embrenha-nos na desolação Ártica e num mistério há muito por resolver. O jovem de 20 anos, saído de um túmulo lovecrafetiano, captado numa fotografia que alimentou os pesadelos de Atwood, foi tido no ano de 1984 entre as "personalidades mais intrigantes" para a americana revista People. John Torrington, protagonista de Congelados no Tempo é um viajante do passado, um corpo mumificado, retirado do solo duro do ártico, o permafrost. John morreu a 1 de janeiro de 1846. Foi a primeira baixa de uma expedição amaldiçoada, aquela que levou John Franklin, oficial da Marinha do Reino Unido, e uma tripulação de 128 homens, a procurar a mítica Passagem do Noroeste, porta de entrada para os mares do Oriente. O corpo preservado de John, 138 anos após a sua morte, ajudou a equipa chefiada por Owen Beatie a formular uma hipótese sobre a morte de todos os membros da Expedição Franklin. John, não obstante as condições macabras do seu resgate polar, também se tornou estrela da literatura, música e poesia do século XX..Sobre a vida de John Torrington pouco se sabe. Nasceu em Manchester no ano de 1825, fez-se ao mar na expedição malograda de Franklin como fogueiro. A bordo seguia uma esperança britânica, a de reclamar para a nação a da descoberta nos mares setentrionais do Canadá de uma passagem marítima viável para a Ásia, obstante à rota do Atlântico Sul e Índico. A 19 de maio de 1845, dois navios, o HMS Erebus e o HMS Terror, partiram do porto de Greenhithe, no Reino Unido para uma viagem estimada entre os três e os cinco anos. Isso mesmo fazia crer os víveres carregados a bordo, entre eles, 62.000 Kg de farinha e 15.000 Kg de alimentos em conserva. John Franklin, 59 anos, trazia no currículo três expedições oceânicas (duas delas a territórios árticos) de bom sucesso. A partir de julho de 1845 cessaram as notícias provenientes do Erebus e do Terror. Um silêncio funesto que não mais seria quebrado..A partir de 1848, e nas décadas seguintes, organizaram-se mais de duas dezenas de expedições com o intuito de resgatar a tripulação da Expedição Franklin. Em 1850, 11 navios britânicos e dois outros norte-americanos, participaram em simultâneo nas buscas na região que compreende o atual território de Nuvanut, no Canadá. Ainda na década de 1850, a Ilha do Rei Guilherme serviu de palco à descoberta das ruínas de um abrigo em pedra. Mais a norte, na Ilha de Beechey, repousavam três sepulturas próximas entre si, as do explorador William Braine, do marinheiro John Hartnell e a de John Torrington. Por mais de um século, até à década de 1970, perdeu-se a notícia do trio de sepulturas. Em 1976, a redescoberta das lápides em madeira, erigidas no solo ártico, sinalizou um evento passado que ainda merecia resolução: quais as causas da morte dos membros da Expedição Franklin? Em 1981, Owen Beatie, então a trabalhar para a Universidade de Alberta, reuniu as autorizações necessárias para empreender caminho rumo à ilha do Rei Guilherme. Uma equipa de cientistas refez os passos da moribunda expedição de 1845, para encontrar ossadas, algumas delas com cortes que indiciavam possíveis práticas de canibalismo. Um facto intrigou a equipa de Owen Beatie: os ossos evidenciavam elevados níveis de chumbo que, acreditavam os investigadores, poderiam decorrer de várias causas: a soldadura das latas de conserva, corantes alimentares, tabaco ingerido, talheres de estanho ou das velas para iluminação..A 17 de agosto de 1984, aproveitando a curta janela de tempo oferecida pelo verão ártico, Owen iniciou a exumação do corpo de John Torrington e dos seus dois colegas de expedição. O caixão encontrava-se a 1,5 metros de profundidade, numa câmara de gelo. A tumba construída em madeira de mogno, apresentava-se coberta de veludo azul com acabamentos em linho branco. O corpo de John descansava sobre um leito de aparas de madeira, sem quaisquer pertences pessoais a acompanhá-lo. Como nos descreve Margaret Atwood no artigo já citado, John pertencia à categoria de entes que desafiam "a regra geral que reduz os demais a pó ou a cinza e que permaneceu reconhecível como indivíduo muito depois de a maioria dos seus contemporâneos se ter transformado em osso e terra"..Os olhos azuis e semicerrados de John "miravam" os rostos dos seus descobridores do século XX. De acordo com o relatório da autópsia, assinado por Roger Amy, do Departamento de Patologia, da Universidade de Alberta, o corpo de 1,62 metros de comprimento não pesava sequer 40 Kg. John morrera após uma doença prolongada. Os seus restos mortais haviam sido mantidos a bordo do navio enquanto era escavada a sepultura. Feita a autópsia, esta revelou pulmões com sinais anteriores de tuberculose e de pneumonia mais recente. Por seu turno, a análise toxicológica detetava níveis elevados de chumbo no cabelo e unhas. Owen Beatie juntava ao rol de padecimentos que levaram à morte de John e dos seus companheiros o do envenenamento por chumbo. Cria o investigador que a comida enlatada era a fonte mais provável do chumbo ingerido. Na época, a solda, efetuada no interior das latas, deixava os alimentos em contacto direto com o metal tóxico. Owen argumentou que o chumbo desempenhou, a par da fome, hipotermia, infeções e declínio físico e mental, um papel de relevo na degradação da saúde da tripulação do Erebus e Terror. Um facto que, apesar de refutado por nomes como o do escritor e historiador Russell Potter (autor do livro Finding Franklin), se mantém como uma das hipóteses para o malogro da expedição..O fado de John Torrington, preservado século após século no seu túmulo de gelo, inspira há décadas a cultura popular. A poetisa britânica Sheenagh Pugh dedicou a John o premiado poema Envying Owen Beatie ["And when the calm, pinched/Twenty-year-old face/Came free, and he lay there"]; Margaret Atwood fez da descoberta inspiração para o conto de 1991 The Age of Lead, incluído na antologia de 2009 Wilderness Tips. E da batida metálica da banda britânica Iron Maiden soou em 1986 o tema Stranger in a Strange Land que, numa tradução livre, nos diz: "Perdido neste lugar/e sem deixar vestígios/Estranho numa terra estranha/Terra de gelo e neve/Preso dentro desta prisão/Perdido e longe de casa/Cem anos se passaram/E os homens vieram novamente/Para encontrar a resposta para o mistério".. dnot@dn.pt