"Aqui a política é mais fácil". As diferenças entre Portugal e a Colômbia

Após o Conselho de Estado, António Costa foi escrever outra página da vida política, desta vez com o escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez. Houve memória, política e, principalmente, Gabriel García Márquez.
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Diz a história que o primeiro-ministro apreciou muito o livro de Juan Gabriel Vásquez As Reputações. Também diz a história que o transmitiu à diretora da Casa da América Latina, Manuela Júdice. Quis o acaso que o escritor regressasse mais uma vez a Portugal, desta em férias com a família, e que surgisse a ideia de juntar num mesmo palco as duas criaturas: leitor e autor. A partir desse momento estava marcado uma conversa sobre esse e outros romances que António Costa comprou em tempos com Vásquez para esta quinta-feira, em Belém, mal António Costa abandonasse o Conselho de Estado.

Como é hábito nos socialistas, não chegou a horas! Mas também não tinha pressa em partir, portanto autor e político - neste caso quase conseguiu ser cidadão -, ofereceram aos presentes um diálogo de 59 minutos que surpreendeu pela enorme ambiência literária. Só mesmo no fim é que Vásquez não resistiu em questionar António Costa sobre o que pensava sobre o processo de reconciliação em curso na Colômbia, depois de meio século de lutas fratricidas entre os 40 milhões de habitantes, ativistas, guerrilheiros e governantes do seu país.

Costa salvou-se de qualquer problema diplomático entre governos português e colombiano respondendo ao lado e usando apenas argumentos políticos através da "memória". Aliás, se houve palavra constante repetida foi essa.

Vásquez tinha perorado sobre o processo de paz em curso no seu país e desejava ouvir o posicionamento de Costa. Este ofereceu-lhe antes o contraponto histórico com Portugal, contando que, tal como na Colômbia, também houve por cá meio século de divisões nacionais. 48 anos de ditadura e 2 de pós-revolução, foi claro! E aproveitou o exemplo do Conselho de Estado de onde vinha para explicar a Vásquez que em Belém se tinham sentado à mesa comunistas que estiveram na prisão e ex-ministros do antigo regime. "E ficam frente a frente, para espanto dos convidados estrangeiros frequentes nestas reuniões", explicou.

Para que não ficassem dúvidas, referiu que após o 25 de Abril de 1974 os portugueses concederam um perdão a si próprios e evitaram que a memória do passado envenenasse o futuro: "Daí que a nossa democracia resista muito bem a extremismos políticos e a discursos racistas", ajudando no exemplo com a informação : "Estamos a fazer o Museu da Resistência para que nada fique esquecido."

Por seu lado, e a pedido de Costa, Juan Gabriel Vásquez explicou o que se passava no seu país, onde os avanços e os retrocessos no processo de paz social entre os colombianos são uma constante, respondendo com um literário "não se sabe bem o que se está a passar". Acrescenta: "Houve um processo de paz, seguido de um plebiscito que não foi aprovado por 30 mil votos. Voltou-se às negociações, aceitaram todas as alterações menos 4 e o governo atual..." A história é longa, intrincada, e Costa escuta até que Vásquez diz: "A política é difícil". Mas não sabia com quem estava a lidar, e Costa respondeu com a "habilidade" que lhe é reconhecida ao fim de quatro anos de geringonça: "Aqui a política é mais fácil."

Se Vásquez queria polémica só ouviu um desabafo entre irmãos/hermanos, o de que "os espanhóis vêm cá buscar tudo o que é bom", a propósito de José Saramago. Vásquez ainda ironizou: "Achei que ia falar de Cristiano Ronaldo!"

Do que falaram mesmo, Costa e Vásquez, na maior parte do tempo foi de literatura. Em especial, sobre um outro colombiano muito famoso e que os marcou a ambos: Gabriel García Márquez. Manuela Júdice já tinha referido na introdução sobre os senhores em causa o amor pelo romance Cem Anos de Solidão. A que juntou outra revelação: "O que atrairá os políticos portugueses na obra de Juan Gabriel Vásquez; porque sei que existem vários ministros que também gostam muito dos seus livros."

"Intentar hablar em espanõl"

Como sempre, a tentação de ser poliglota também afetou António Costa. Que cedo disse: "Vou intentar hablar español", acrescentado que seria mais "portunhol". É contra-natura evitar esta simpatia para com os estrangeiros, portanto Costa treinou a língua ao revelar o seu prazer em conversar com Vásquez. Explicou que também se sentia atraído por outro escritor colombiano, Héctor Abad Faciolince. A seguir foi a vez de dar o pontapé de saída à conversa e questionou Vásquez sobre a importância da memória. A resposta foi grande e passou por William Faulkner, que dizia que o "passado não é passado" e que pretende que os seus personagens tenham uma grande preocupação com a memória: "A literatura permite recordar coisas que de outra maneira não seria possível", ou seja, "o romance é um lugar de memória".

Ao fim de alguns minutos já Juan Gabriel Vásquez tratava o primeiro-ministro de "António" para cá e de "António" para lá: "Os romances são a melhor forma para conhecer um mundo em que muitas forças pretendem fazer esquecer os acontecimentos. A literatura na América Latina é para isso." Cita um exemplo de referido García Márquez: "Descreve a morte de vários trabalhadores através de Aureliano Buendía, mas aqueles que ouvem o personagem dizem que o que ele contava não tinha acontecido."

García Márquez voltou várias vezes. Vásquez: "Para mim foi um escritor muito importante. Cem Anos de Solidão é um livro tão poderoso que se me pagassem 100 pesos cada vez que respondo a essa pergunta já estava rico e não precisava mais de escrever." Costa: "O romance estava na biblioteca lá de casa e quando o li foi um momento extraordinário. Márquez é tão totalitário na literatura colombiana que só muito depois é que descobri que havia mais alguma coisa a ler."

Nos minutos seguintes, Costa provou que tinha lido As Reputações e questionou Vásquez sobre o facto de nunca se saber exatamente o que de principal aconteceu, ou não, no facto que justifica todo o romance. Acrescentou, a brincar: "Essa é uma das razões porque quis falar consigo." Vásquez rabeou por um lado e outro a fugir da explicação, até que disse: "Os personagens não me quiseram esclarecer essa questão e o que eu pretendia era falar sobre a memória individual e não coletiva." Acrescentou, também a brincar: "Por uma quantia de dinheiro, poderei revelar-lhe a verdade."

Antes de terminar a sessão, Vásquez quis saber o que Costa achava de Saramago. Após um momento de campanha eleitoral sobre o seu papel na tarefa de facilitar as pazes do Nobel com as autoridades portuguesas que o tinham maltratado, o primeiro-ministro retirou um exemplar de Viagem a Portugal e ofereceu-o ao escritor colombiano. Acertou na escolha, pois Vásquez não o tinha.

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