Zacarias (João Nunes Monteiro) ainda não é maior de idade mas já pega numa arma como gente grande. Ele parte com um grupo de soldados para África, em 1917, tempo da Primeira Guerra Mundial, em busca de proezas heroicas e um motivo de orgulho. Porém, só encontra mato e uma longa provação que acentuará as suas dores de crescimento, entre encontros bizarros, febres altas e alucinações. Zacarias é Mosquito e vice-versa: tudo o que acontece dentro e fora da cabeça dele é testemunhado pela lente de João Nuno Pinto. Um filme físico e mental, atmosférico e sensorial, que enfrenta a amoralidade da guerra e o retrato desumano do colonialismo. O realizador quis contar a grande aventura africana do seu avô, que não tem nada de glória..Este filme e esta personagem são inspirados numa história do seu avô paterno, que não conheceu. Como é que essa história lhe chegou? São histórias de família, contadas em serões, jantares, almoços... O meu avô era uma dessas personagens maiores, o grande patriarca, e havia muitas histórias sobre ele e à volta da ida dele para África. Um dia, no meio dessas histórias, descobri que o primeiro contacto que teve com Moçambique foi na Primeira Guerra Mundial - na altura ele era muito jovem e queria ir para o combate. Portanto, esta história do soldado que vai à procura da guerra, sozinho, tem uma base verídica: ele, de facto, foi esse jovem soldado..O que é que lhe interessou particularmente? A mim sempre me fascinou a ideia do que é que teria acontecido nesta viagem que o fizesse querer ficar em Moçambique, apesar de todo o sofrimento e horror que deve ter vivido. Imagine-se um miúdo do norte, com 17 anos, sozinho em Moçambique numa altura em que não havia estradas, não havia nada, e ele com malária, cheio de febres, a andar por lá perdido... impõe-se a pergunta: o que é que aconteceu ali? Primeiro, achei que era uma história interessante de contar, depois, à medida que fui entrando mais no assunto e entendendo o que é que se tinha passado, achei que era importante contar..Sendo um filme sobre um soldado em África na Primeira Guerra Mundial, é também um retrato do colonialismo. Ao falar da nossa presença em África é impossível não falar do colonialismo. Ao falar de uma guerra europeia em África, como foi o caso da Primeira Guerra Mundial - que era entre potências europeias, mas, ao passar-se no continente africano, arrastava milhões de africanos para o conflito -, é impossível não falar do colonialismo. E depois é preciso perceber que hoje em dia nós ainda carregamos uma herança, no nosso quotidiano, desse colonialismo, do que se passou lá atrás. Por isso, interessou-me mostrar no filme o que é que se passava na altura de tão esdrúxulo, surreal... No fundo, confrontar o espectador com o que significa ser um império colonizador. Não há bons e maus colonizadores, há colonizadores e colonizados..O conflito interior do protagonista, que "imita" a atitude dos seus superiores hierárquicos, é uma forma de explorar a visão do colonizador? Ele, sendo jovem e orgulhoso, quer muito fazer bem as coisas. E "fazer bem" tem que ver com toda a narrativa e doutrina que lhe foi imposta. Aliás, durante todo o filme vemo-lo a ser doutrinado, a ser-lhe dito o que é que ele tem de fazer... Ora ninguém nasce racista ou colonizador, portanto, isso foi-lhe incutido tal como a ideia de ser uma máquina de guerra, que deve olhar para os alemães como uns monstros e para os africanos como uns selvagens que não são de confiança. É uma visão completamente eurocêntrica sobre África. E, nesta história de crescimento, ele vai-se libertando dessa visão, mediante as situações, e aprendendo a pensar pela sua própria cabeça..Como é que foi a experiência de rodagem em Moçambique, sobretudo naquela comunidade feminina pela qual o Zacarias passa a certa altura? Foram dois meses muito intensos. Sendo o filme uma espécie de road movie caminhante, nós estávamos sempre em movimento, sempre a mudar de local de filmagem, sempre a dormir em sítios diferentes, a comer mal, a acordar cedo... havia um grande desgaste. Além disso, estávamos no mato. O perigo das cobras, dos bichos peçonhentos, da vida selvagem, estavam lá todos à nossa volta! Uma vez na preparação, cheguei de Moçambique e fui direto para o hospital porque tinha sido picado por um bicho que até hoje não se sabe qual é....Um pouco como a experiência do próprio Zacarias... Exato. E então, nós que andávamos sempre em movimento, de repente ao chegar a essa aldeia, parecia que tínhamos chegado a outro lugar, uma vez que até àquele momento é a temática da guerra, muito masculina, que prevalece. Entramos aí no mundo feminino: aquelas mulheres e crianças transportam-nos para outro universo. Ou seja, o contraste com o que se vê até ali reside sobretudo numa imagem do acolhimento. Há mesmo uma mistura entre ficção e aquilo que foi a verdade da circunstância da rodagem. Foi uma ocasião incrível, uma semana e meia de oásis..Ao contrário da Segunda Guerra Mundial, a Primeira Guerra Mundial não é retratada com frequência no cinema. No entanto, ainda há pouco estreou 1917 [de Sam Mendes], ano também da ação do Mosquito, e ambos baseados em histórias contadas por avôs. É uma guerra cuja memória depende muito dos relatos de quem a viveu? Sim, especialmente sobre os portugueses em África na Primeira Guerra Mundial há muito pouca coisa. Foi uma guerra apagada dos livros de história, não foi ensinada nas escolas. Isto porque, depois do fim dessa guerra, entra o Estado Novo e perante a falta de honra do exército português, e o modo tão pouco dignificante como se justificou a presença portuguesa em África, não interessava que se falasse no assunto... De facto, só quem teve familiares, neste caso, avôs ou bisavôs, que combateram é que teve acesso a essa página rasgada. Aliás, as pessoas com quem falei, por cá, do filme não sabiam sequer deste capítulo da guerra..À partida, não se associa Primeira Guerra Mundial e África. Exatamente! Primeira Guerra Mundial é França. E, no entanto, morreram mais portugueses em África do que em França. Também por aí, quando comecei a perceber a dimensão trágica disto tudo, tornou-se evidente que era urgente fazer este filme. Acaba por ocupar um lugar que, narrativamente, está vago. Ou seja, como quiseram apagar a história, agora todas as narrativas são possíveis..E em relação ao ator João Nunes Monteiro, o que é que saltou à vista no casting? O que me chamou a atenção nele foi o facto de ter um físico frágil e uma inocência que legitima a idade do protagonista, os tais 17 anos, ao mesmo tempo que é capaz de se transformar, de fazer que o personagem se vá modificando e ganhando uma profundidade muito maior, para que no final seja um homem, no sentido adulto da palavra. De resto, o João Nunes leva o filme às costas, é através dos olhos dele que nós vemos o que acontece..O título Mosquito lembra A Costa do Mosquito [1986, Peter Weir], com Harrison Ford. Houve alguma ligação entre a febre da utopia deste americano na selva das Honduras e o jovem soldado na selva africana? Não me ocorreu, por acaso, mas os temas tocam-se, sem dúvida! Há essa febre de utopia, de uma glória inalcançada, e depois esta "figura fraca" que é o mosquito, que parece insignificante e é capaz de tanto mal - estamos a falar de um parasita que é o soldado e é o país que pousou ali. Nós achamos que fomos os maiores, mas na verdade só causámos mal..O convidado especial do elenco é Camané, que surge em dois momentos a cantar. Que simbolismo tem a voz dele neste filme? Na minha cabeça, o Camané era essencial e, no entanto, o que faço é quase provocatório: tenho alguém como ele no filme e desfoco-o, coloco-o como pano de fundo, com outros a conversar por cima... Porque é essa a falta de respeito que estes soldados, e, de resto, que este exército e esta guerra têm. Há em todos eles uma enorme falta de respeito pelo outro, pelo seu próximo, pelo ser humano. Mas eu queria o Camané até mais pela cena final, porque é um final inspirado no do Paths of Glory [1957], de Kubrick, em que temos uma alemã a cantar, com uma voz linda, para aqueles soldados e, de repente, descobrimos a humanidade nos rostos deles. Eu quis homenagear este momento no final do Mosquito e precisava de alguém que tivesse essa força.