Chegada a Madrid em 2015 com 18 anos de experiência na estação pública, Daniela Santiago (1974) assistiu de perto ao desenrolar de acontecimentos inéditos na democracia espanhola, entre os quais o crescimento da extrema-direita espanhola. Em A Tempestade Perfeita (ed. Oficina do Livro), a jornalista ouviu familiares de vítimas do franquismo e apoiantes do ditador, cientistas políticos e dirigentes partidários para explicar as causas da "erva daninha que mina a democracia" e comparar o Vox com a derivação portuguesa. Sem hesitar em dar a sua opinião nas páginas do livro, conclui que "estes movimentos reaparecem não por mérito próprio, mas por demérito dos que estiveram no poder durante tantos anos"..Comecemos pela atualidade. A crise migratória de Ceuta com Marrocos poderá favorecer a extrema-direita espanhola? Completamente. Santiago Abascal, o líder do Vox, já por várias vezes tinha tentado tirar dividendos desta situação que se vive em Ceuta e Melilla. Tanto que na campanha eleitoral dirigiu-se à praia onde chegaram agora cerca de dez mil migrantes e voltou lá. Pedro Sánchez esteve lá na véspera, interrompeu a agenda para ir marcar posição, mas foi apupado. Abascal, que já tinha defendido um muro como Trump defendia na fronteira com o México, foi lá defender uma fronteira militarizada e ouviu aplausos..A saída de Pablo Iglesias do governo e a queda continuada do Ciudadanos, que desapareceu do parlamento regional de Madrid, são consequência da ascensão do Vox? São consequência porque muitos dirigentes do Ciudadanos têm passado para as fileiras do Vox e do PP ao não se reverem na atual liderança de Inés Arrimadas. E o facto de ter havido este primeiro governo de coligação com outra extrema, a extrema-esquerda. Ou seja, o Vox não aparece por acaso, mas porque há uma extrema-esquerda com força na sociedade espanhola. O que isto mostra é que a grande festa que se fez ao fim do bipartidarismo, em finais de 2015, não valeu de nada porque tanto o Podemos como o Ciudadanos foram um flop. O Ciudadanos já nem tem representação no parlamento da comunidade de Madrid, e na Catalunha, onde chegou a ganhar eleições, praticamente nem tem representação. Com a saída em massa de líderes regionais está condenado a desaparecer. O Ciudadanos era o partido de um homem, Albert Rivera e nisso e só nisso comparo-o ao Chega. Já o Vox é de mais do que um homem..A filha do industrial do açúcar que azedou a campanha em Madrid.O livro nasce das entrevistas e reportagens que fez para a RTP, embora não se cinja a estas. Este livro é também serviço público? Eu diria que sim, mas não é RTP. Este livro é da Daniela Santiago, sem qualquer tipo de apoio, escrito nas horas vagas, poucas, durante o muito trabalho da pandemia. Eu tinha feito uma grande reportagem em abril de 2019, antes de o Vox entrar no parlamento nacional, após as eleições na Andaluzia, que foram um laboratório para o Vox como os Açores estão a ser para o Chega. Depois disso vêm as eleições gerais em abril, e depois em novembro, onde entram em força e passam a terceira força política. Em finais de janeiro do ano passado decidi que tinha um manancial de material e de experiência, tinha estado em todos estes momentos únicos nestes seis anos de democracia espanhola - e não sou eu a dizê-lo, são os meus colegas jornalistas, bem como os políticos - com o fim do bipartidarismo, os 10 meses sem governo, a primeira moção de censura, a crise na Catalunha, a exumação de Franco, o ressurgimento da extrema-direita, e tinha muitos bastidores, muita coisa por contar. Comecei a escrever e a fazer muita investigação..No livro recorda a inabilidade dos protagonistas, desde a inflexibilidade de Mariano Rajoy e dos secessionistas catalães aos cálculos de vistas curtas de Pedro Sánchez, Albert Rivera ou Pablo Iglesias. Há um défice de qualidade dos dirigentes políticos? Há um défice de capacidade de diálogo e de entendimento, de se colocarem à frente do entendimento nacional, de ser uma discussão direta de cargos. Sempre se falou abertamente disso. Nunca me vou esquecer: estava na sala de imprensa quando Pablo Iglesias pôs a gravata pela primeira vez e com uma pasta debaixo do braço a oferecer-se para vice-primeiro-ministro. Ainda nada tinha sido discutido e já era o vice-primeiro-ministro. Não se discutia políticas nem programas, discutia-se polémicas. E os eleitores não são parvos. Ficamos muito a dever aos eleitores espanhóis em termos democráticos. Nas eleições de Madrid votaram 80%. Em Espanha falar de abstenções como as que há em Portugal é incompreensível. O espanhol vota e viu-se numa situação em que não obtinha resposta porque os partidos que apareceram para salvar e ser alternativa foram do mesmo. O Ciudadanos em muitas políticas foi igual ou pior do que o PP e o Podemos acabou por se unir ao PSOE num governo de coligação. Eu conto isto no livro: numa das últimas vitórias do PSOE, na festa na calle Ferraz [à porta da sede], uma senhora explicava-me que a política é como ir ao supermercado: vê-se um produto novo e leva-se para experimentar e se gostar continua-se a consumir, se não gostar compra-se outro. Foi isto que aconteceu com o Ciudadanos e com o Podemos e é o que está a acontecer com o Vox..Quem são os deputados do Vox? Dos militares ao concorrente de 'reality show'.O problema do Vox é que pode não haver como devolver o produto. Pode, e eles já têm muito poder. Um partido que, por exemplo, impede um voto de pesar por uma mulher que foi assassinada pelo cônjuge, que aqui é entendido como violência machista, já está no poder. É o poder de serem a terceira força política e ao apoiarem governos regionais têm poder de decisão. Não estão no governo, mas o governo depende deles..Citaçãocitacao"Não caiu bem ao Vox quando Ventura tentou levantar a voz e o nariz a Santiago Abascal pedindo que se retratasse por ter anexado Portugal no mapa. Estava para haver um encontro [entre ambos] e não houve. O Vox não olha com seriedade para o Chega.".A Tempestade Perfeita explica as causas do fim do bipartidarismo em Espanha e da ascensão do Vox: escândalos de corrupção do PP e da família real, a lei da memória histórica e a exumação de Franco, a questão catalã e as bandeiras da luta contra a imigração e contra as leis da violência de género e da paridade. A crise na Catalunha terá sido o maior catalisador do Vox? Terá sido. O Vox aproveita-se dessa grande divisão, desses gritos de "A por ellos" [vamos a eles], quando a polícia nacional foi para a Catalunha durante o referendo, ou os catalães a gritar "Nós não somos espanhóis", para surgir com a ideia da Espanha una e indivisível. E aí encontramos muitas semelhanças do "Por Deus e pela pátria" do franquismo. Construiu-se um movimento de ódio ao cidadão catalão e a defesa da unidade, da pátria, da terra, do touros, da cultura espanhola, do homem do campo, machista..NÃO MEXER: "Há dúvidas de que o eleitorado do Vox seja de extrema-direita".Os entrevistados dividem-se sobre o neofranquismo do Vox. Já os eleitores, como se lê no livro, são fascistas reciclados mas muitos são descontentes. Esta base chegará para alcançar o poder, ou concorda com o sapateiro do mercado de Sevilha que lhe vaticinou que o Vox terá futuro igual ao Podemos? Só o tempo o dirá. São partidos diferentes e tudo depende da evolução do governo espanhol, como é que Pedro Sánchez vai conseguir navegar em águas turbulentas após este resultado eleitoral em Madrid [governo do PP com apoio do Vox], e a gestão da pandemia. Para o PP ser governo com maioria não hesitaria em coligar-se com o Vox. O Pablo Casado, um bocadinho à Rui Rio, nunca foi bem explícito e bem claro ao ser perguntado. Porque já não pode contar com o Ciudadanos, como o PSD não pode contar com os poucos votos do CDS. Ainda mais, possivelmente pressionado pela forte presença da [Isabel Díaz] Ayuso, que pode vir a ser uma adversária forte na liderança do PP, não tenho grandes dúvidas que se tiver oportunidade faça uma aliança com o Vox . Aliás, o Juanma Moreno, líder do PP na Andaluzia, na entrevista, defende que estes partidos devem ser introduzidos no sistema para se normalizarem..Casado diz adeus ao passado do PP sob a ameaça do Vox.No episódio do cartaz do Vox em que Portugal foi anexado a Espanha, escreve que o Vox não leva a sério o Chega. Como se explica esta aparente rivalidade de nacionalismos? Poderá haver outros fatores, mas esse, quando [André] Ventura tentou levantar a voz e o nariz a Santiago Abascal pedindo que se retratasse por ter anexado Portugal no mapa, não caiu bem ao Vox. Estava para haver um encontro [entre ambos] e não houve. Apesar do beija-mão que Ventura consegue tanto de [Matteo] Salvini e principalmente de [Marine] Le Pen, que parece absolutamente apaixonada por Ventura, Santiago Abascal tem mais que fazer. O Vox não olha com seriedade para o Chega. Não o vê como um partido com os alicerces e a força do Vox. O que se sente é que não são uma força próxima. E em conversas com outros jornalistas e com políticos, o Chega é visto como um embrião do populismo e da extrema-direita em Portugal..cesar.avo@dn.pt