Pós-geringonça

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A geringonça morreu no debate do orçamento de Estado para 2020, o que não quer dizer que o governo não dure uma legislatura nem que o principal foco de equilíbrio que o sustenta não continue a ser o diálogo com os partidos à sua esquerda. Mas significa que esta legislatura será fértil em episódios parlamentares e acordos de geometria variável, acabando com a polarização direita-esquerda da anterior e gerando coligações ad-hoc, numa gestão casuística e tática de todos os partidos. Se o quotidiano pode bem ser gerido assim, há que saber como serão tomadas as grandes decisões, que na legislatura anterior dependeram dos pactos celebrados à esquerda.

O cimento que uniu o BE, o PCP e o PEV ao PS há quatro anos era em parte feito da facilidade de convergir na inversão das políticas dos dois anteriores governos, noutra parte de um efeito-novidade do fim do arco da governabilidade que provocou uma necessidade de aprendizagem de todos os partidos e moderou as agendas da esquerda e numa terceira parte pela incapacidade do PSD de sair do seu fechamento, mantendo a deriva de direita neoliberal de Passos Coelho.

A geringonça dependia de uma intensa clivagem direita-esquerda que não vimos neste Orçamento de Estado e voltaremos a não ver em muitas ocasiões daqui para a frente. Pelo contrário, voltámos a ter o PS e o Governo sozinhos, brandindo contra a direita e a esquerda a responsabilidade, a racionalidade e a tecnicidade, algo que era recorrente acontecer nos governos de Guterres e Sócrates e indicia o princípio do regresso à solidão governativa do PS.

A liderança de Rui Rio no PSD e a perda de influência eleitoral pelo BE e pelo PCP nas eleições legislativas explicam a mudança de clima.

Rui Rio é um político diferente da linha cerebral a que estamos habituados na geração de políticos que hoje comanda o país. Nesse plano faz lembrar Mário Soares e Francisco Sá Carneiro. Tem as suas intuições e segue-as. Só não provocou ainda estragos maiores - se estragos lhe chamarmos - porque, ao contrário deles, se deixa facilmente condicionar no momento da verdade por apelos externos, venham eles de Belém, do aparelho partidário que o rodeia, de interesses organizados ou de qualquer outro fator que eu não conheça nem imagine. Esse avanço-recuo tolheu-o até agora, mas a sua intuição é a de que a sobrevivência do PSD passa por menos pose de Estado, recolocação política num centro a-ideológico, populismo moderado, abandono da posição de falcão orçamental - deixando esse espaço por inteiro ao PS - e adoção de entendimentos com a esquerda em reivindicações que tenham apoio em segmentos específicos do eleitorado.

A votação da questão do Metropolitano é, nesse plano, exemplar. Pouco importou ao PSD violar a separação de poderes ou arriscar a perda de fundos estruturais, como faria numa visão institucional da política. Viu uma oportunidade de sublinhar o isolamento do governo e aproveitou-a, indo ao coração do adversário de ontem ao votar uma proposta do PCP. A questão da linha de metropolitano merece ser analisada em contexto específico. Mas, para que não pareça que lhe fujo, digo que me parece evidente que o Parlamento está a intrometer-se na esfera da reserva político-administrativa do Governo e é por isso, como defende o PS, inconstitucional, se bem que o precedente da posição de Tribunal Constitucional sobre o Terminal de Alcântara aconselhe a alguma prudência quanto ao desfecho. Dito isto, até discordo da solução que Governo, Metro e Câmara de Lisboa adotaram, cortando quem vive para lá do Campo Grande do centro da cidade, retardando a expansão a Loures e investindo numa linha circular, que fechará a cidade "rica" e agravará a segregação urbana.

Mas voltemos ao posicionamento a esperar do PSD nesta legislatura. O posicionamento agora assumido já vinha a ser ensaiado desde a questão da carreira dos professores. Note-se que a possibilidade de um entendimento direita-esquerda que agravaria a situação orçamental e que então comoveu o país, agora, no processo de discussão orçamental, irritou o PS e o Governo, deve ter provocado umas dúzias de telefonemas cruzados, mas decorreu, embora com suspense, sem drama nacional, até ao recuo final do PSD. Esperemos pelos próximos capítulos, mas antecipo que Rui Rio será o baralhador-mor da legislatura. Uma coisa já conseguiu - tornar visível que ela foi substituída por procedimentos de emergência entre o PS e o PCP.

Se o BE descola e o PCP fica é porque este dá historicamente menos importância aos resultados eleitorais do que aos resultados políticos que alcance noutras frentes e certamente o voto na questão do IVA terá tido uma contrapartida política que mais tarde ou mais cedo se verá. E um governo assim pode bem durar a legislatura toda, a menos que o PCP traga a agenda laboral para o topo das suas prioridades e arruíne com isso o equilíbrio instável de que é a partir desta semana o principal garante. Mas, se nunca o fez no passado, porque haveria de o fazer a partir de agora?

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