Português quando acerta, cigano quando falha?

Ricardo Quaresma é um orgulho para a comunidade cigana. Ainda mais quando é decisivo para o apuramento de Portugal para os oitavos de final do Mundial de futebol, como segunda-feira com o golo frente ao Irão (empate 1-1, segundo lugar no grupo). Sentem carinho na população, mas que dura pouco, lamentam.
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"Quando um cigano faz alguma coisa de mal pagam todos por um, quando é uma coisa boa até se esquecem que é cigano", diz Olga Mariano.

A presidente da Associação Letras Nómadas (ALN) e sócia-fundadora da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (ADMCP) participou ontem numa reunião de mulheres e estavam precisamente a falar de Quaresma quando o DN ligou.

"Foi o salvador da Pátria, um grande homem, um herói português cigano. É um grande orgulho, um exemplo para os nossos jovens", disse. Tem dúvidas se terá igual influência na população portuguesa em geral. "Aí as pessoas já veem apenas um jogador de futebol, fazem uma triagem, é português. Não está em causa o Cristiano Ronaldo, gosto muito dele, mas e se fosse o Quaresma a falhar o penálti?", pergunta, para logo responder: "Se calhar, já diziam que era o cigano."

Na reunião, ficou decidido que iriam contactar o jogador para participar numa das suas atividades.


Portugal tem uma Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, ao contrário de países da Europa de Leste em que a etnia é vítima de segregação, como têm denunciado os sucessivos comissários europeus dos Direitos Humanos. Ainda assim, a comunidade sente-se discriminada.

Bruno Gonçalves foi comprar pão no momento em que Quaresma marcou golo. "As pessoas diziam: "O nosso ciganito", é uma grande alegria ouvir "o nosso". É espetacular o efeito que o Ricardo tem, sobretudo quando joga na Seleção. E não me importaria de voltar à semana de 10 a 18 de julho de 2016 [após a conquista do Europeu], em que senti um carinho por parte da comunidade maioritária e não vi manifestações de representações negativas sobre os ciganos". Um comportamento a que apelida de "racismo hipócrita".

Eleito pelo Bloco de Esquerda para a freguesia de Buarcos e São Julião (Figueira da Foz), Bruno faz parte da ALN, que dinamiza a Academia de Política das Comunidades Ciganas organizada pelo Conselho da Europa. É o segundo cigano a entrar na política, depois do atual secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, o que para Bruno, que está no último ano de uma licenciatura em Animação Sociocultural, significa que há muito a mudar no país.

Também a frequentar o ensino superior está Sónia Prudêncio, no 1.º ano do curso de Educação Social, no Porto. Mãe de duas meninas, resolveu voltar à escola, a exemplo do que fez o marido. Vivem num bairro social em Gondomar, onde tiveram dificuldades de integração já que eram a única família cigana residente.

"O Quaresma é um orgulho, representa a comunidade cigana que está muito ligada a estereótipos. O facto de marcar o golo foi muito importante porque faz com que a população veja que os ciganos são portugueses. Estamos em Portugal há mais de 500 anos. Sofremos com a Seleção, vibramos com os golos de Quaresma como com os de Ronaldo", explica Sónia.

Eleita Cigana do Ano em 2018 pela ALN, assegura que não tem favoritos na Seleção. "As minhas filhas é que vibram mais com o Quaresma. Embora estejam integradas na escola, ouvem bocas e são excluídas de jogos por serem ciganas. Infelizmente, isso ainda existe."

Engenheiro físico na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Piménio Ferreira realça a importância do jogador para a imagem dos ciganos. "Vemo-nos representados de forma positiva, mas sentimos a mesma alegria com o Ronaldo, pois é alguém que nos representa bem lá fora", começa por dizer, acabando por reconhecer que Quaresma marca pontos para a etnia. "Pertence a uma comunidade com seis séculos de perseguição e sobre a qual existem muitos estereótipos. Em Portugal, o futebol move multidões e é importante perceber que temos um Quaresma que nos pode dar grandes alegrias. Pode não servir para mudar políticas, embora ele esteja a fazer política, mas ajuda a mudar mentalidades".

Elogiam, também, o comportamento do extremo ao afirmar o seu orgulho enquanto cigano. Bruno Gonçalves espera que, depois de terminar a carreira, se envolva nas suas lutas. "Acreditamos que terá mais tempo para abraçar as causas da comunidade, que são as dele."

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