Portugal no top da liberdade de imprensa, mas não há motivos para festejar

Pandemia agrava dificuldades e restrições ao trabalho dos jornalistas, cá como no resto do mundo.
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A pandemia foi um maná para os regimes autoritários e para democracias-só-no-papel. Na Hungria de Viktor Orbán legislação aprovada de emergência prevê uma moldura penal de até cinco anos de prisão para quem divulgue "informações falsas". Um atentado à liberdade de imprensa num país da União Europeia e classificado em 89.º lugar no índice da liberdade de imprensa mundial.

Este é um exemplo, mas há mais, muito mais. No Camboja, Hun Sen não se satisfez com o poder conquistado em mais de três décadas como primeiro-ministro e aproveitou para prender dezenas de opositores e um jornalista pelo crime de divulgarem notícias falsas.

Não por acaso, no espaço de poucos dias o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, realçou a importância dos jornalistas e do seu trabalho. Numa mensagem televisiva sobre a pandemia, o português instou os governos a serem "transparentes" e afirmou que "o espaço cívico e a liberdade de imprensa são essenciais".

Guterres voltou ao tema numa mensagem de vídeo para o dia mundial da liberdade de imprensa, que foi proclamado em 1993 pelas Nações Unidas, "inspirado pelos esforços de jornalistas africanos que em 1991 produziram a histórica Declaração de Windhoek, exigindo pluralismo e independência dos meios de comunicação social", como disse o nigeriano Tijjani Muhammad-Bande, presidente da Assembleia-Geral da ONU.

"Restrições temporárias à liberdade de movimento são essenciais para superar o covid-19. Mas elas não devem ser utilizadas como uma desculpa para repimir a capacidade de os jornalistas fazerem o seu trabalho", vincou Guterres.

"À medida que a pandemia se espalha também deu origem a uma segunda pandemia de desinformação, de conselhos prejudiciais à saúde, de ferozes teorias da conspiração. A imprensa fornece o antídoto: notícias e análises verificadas, científicas e baseadas em factos."

Para o secretário-geral da ONU, os jornalistas e os profissionais de órgãos de comunicação social "são cruciais" para que se possam tomar decisões informadas e, quando o mundo luta contra o covid-19, "essas decisões podem fazer a diferença entre a vida e a morte".

"Apelamos aos governos que protejam os trabalhadores da comunicação social e fortaleçam e mantenham a liberdade de imprensa, essencial para um futuro de paz, justiça e direitos humanos para todos", concluiu.

Esta mensagem de apoio ao jornalismo surge dias depois de um perito independente da ONU em matéria de direitos humanos ter documentado a relevância do trabalho dos jornalistas em tempo de emergência sanitária e, por outro, comunicou "relatos alarmantes" de represálias contra jornalistas, sob o pretexto de espalhar desinformação.

O professor de Direito David Kaye, relator especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, documentou estas ameaças no seu relatório ao Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas.

Kaye sublinhou o papel crucial de uma imprensa livre, especialmente durante uma crise sanitária.

Para o docente da Universidade da Califórnia Irvine, os últimos meses, os meios de comunicação social independentes têm sido "uma alavanca essencial para a informação do público". Por conseguinte, a detenção de jornalistas por fazerem o seu trabalho está em oposição directa à obrigação de assegurar um ambiente favorável aos meios de comunicação social, afirmou.

"A criminalização do jornalismo tem de acabar. Isso pode começar com a libertação urgente dos jornalistas da prisão", conclui.

Segundo o Comité para a Proteção dos Jornalistas, cerca de 250 jornalistas em todo o mundo estão atrás das grades. Este órgão lançou uma petição online para a libertação dos profissionais da comunicação.

É num contexto especialmente crítico, de aprofundamente de dificuldades dos meios de comunicação, que Portugal vê a sua posição subir dois lugares no índice de liberdade de imprensa mundial.

O nosso país está agora em décimo lugar entre os 180 estados sujeitos a uma avaliação por parte dos Repórteres Sem Fronteiras, ao lado dos países nórdicos, da Jamaica, Costa Rica e Nova Zelândia.

"Mesmo que os jornalistas portugueses sejam mal pagos e a insegurança no emprego esteja a aumentar, o ambiente jornalístico é relativamente calmo", lê-se no relatório.

Contudo, aponta para o facto de o insulto e a difamação continuarem a ser objeto de criminalização, o que coarcta a liberdade de expressão.

Também afirma que os jornalistas que cobrem o futebol estão sujeitos a ameaças de processos judiciais quando tentam descortinar más práticas dos clubes.

No lado negro do índice está a Coreia do Norte, o Turcomenistão, a Eritreia e a China, o país no centro de uma controvérsia sobre a forma como divulgou a informação respeitante ao início da pandemia, pelo que não deverá melhorar o 177.º lugar em 2021.

"No sistema autoritário de partido único da China, os funcionários que suprimem informação e manipulam dados para propaganda ou progressão na carreira não é novidade, e provavelmente não mudará em breve. O registo consistente do governo chinês de censura e manipulação de informação durante crises de saúde pública é do domínio público", escreveu, a propósito, a ativista da Human Rights Watch Yaqiu Wang, no Quartz.

O país que tem estado em confronto geopolítico com a China, os Estados Unidos, segue em 45.º lugar na tabela. "As detenções, agressões físicas, difamação pública e o assédio a jornalistas continuaram em 2019, embora o número de jornalistas detidos e agredidos tenha sido ligeiramente inferior ao do ano anterior. Grande parte dessa ira provém do presidente Trump e dos seus parceiros no governo federal, que demonstraram que os Estados Unidos deixaram de ser um defensor da liberdade de imprensa no seu país ou no estrangeiro", lê-se no relatório dos RSF.

Este clima vai ao encontro do relatório recentemennte publicado pelo Comité para a Proteção dos Jornalistas intitulado A administração Trump e os media, que conclui que atacar proprietários dos meios de comunicação, jornalistas e fontes de notícias faz parte de uma estratégia bem definida.

Um resumo do que o empresário nova-iorquino pensa sobre como lidar com os media está nestas declarações à jornalista da CBS News Leslie Stah, quando havia sido eleito, sobre os constantes ataques de Trump à imprensa. "Você sabe por que eu faço isso? Faço-o para desacreditar todos vós e humilhar todos vós, para que, quando você escrever histórias negativas sobre mim, ninguém acredite em você."

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