Portugal fora de corredor britânico. Decisão "sem rigor científico" nem "transparência"
"Portugal está a ser penalizado por uma métrica (a incidência de covid-19 por 100 000 habitantes nos últimos 14 dias) que não reflete corretamente a gravidade da epidemia no país". Este é o resultado de uma análise elaborada por investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa à decisão do Reino Unido em excluir Portugal continental de uma lista de destinos seguros, que não exigem duas semanas de quarentena no regresso a casa. Para os especialistas, o governo britânico não se regeu pelo "rigor científico", nem divulgou de forma transparente alguns dos seus critérios.
De acordo com o executivo de Boris Johnson a decisão - divulgada na passada sexta-feira - foi tomada com base em critérios epidemiológicos, geográficos, de capacidade do sistema de saúde e condições de mobilidade, mas os especialistas da ENSP acusam o governo do Reino Unido de não ter tornado explicita a avaliação de alguns destes parâmetros.
Os médicos de Saúde Pública apontam que os britânicos têm fundamentado essencialmente as suas análises na incidência de covid-19 (n.º de casos por cem mil habitantes) e alertam que ter em conta apenas este indicador pode levar a decisões "erradas". Chamam ainda a atenção para a necessidade de olhar para a política de testagem do país - que consideram ser a principal responsável pelo aparecimento consecutivo de mais casos de infeção pelo novo coronavírus -, mas também para a taxa de letalidade (atualmente de 3,7%), e para o número de internamentos em enfermaria e em cuidados intensivos, por exemplo.
"Interpretar valores de incidência de casos reportados sem considerar outros indicadores de risco epidemiológicos, a distribuição geográfica e sem considerar que diferentes países detetam diferentes percentagens do total real de casos é errado e levou à adoção de políticas desadequadas que, sem contribuir de forma relevante para prevenir a transmissão, têm consequências negativas a nível socioeconómico, político e diplomático", pode ler-se no documento assinado por Vasco Ricoca Peixoto e por Alexandre Abrantes.
No Algarve - um dos principais destinos de férias dos ingleses, que representaram, no ano passado, 60% da ocupação hoteleira da região -, as manifestações contra a posição do Reino Unido são várias. E mesmo o ministros dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, classificou a decisão de "errada", um "absurdo", que causa "muito desapontamento".
As únicas duas regiões portuguesas que figuram na lista de 59 países (que inclui Espanha, Itália, França, Alemanha) publicada pelos britânicos são a Madeira e os Açores. Na prática, os ingleses que quiserem passar férias em Portugal podem, mas serão depois obrigadoa a ficar 14 dias em quarentena no regresso ao Reino Unido.
A lista foi elaborada pelo Centro de Biosegurança Comum [Joint Biosecurity Center], em conjunto com a Direção-Geral da Saúde de Inglaterra, com base na "avaliação de risco" e teve em conta o número de novos casos e a trajetória potencial da doença. A decisão de excluir Portugal Continental não será alheia aos novos surtos na região da Área Metropolitana de Lisboa, onde há 19 freguesias em estado de alerta e com o dever cívico do recolhimento. Sobre isto, no entanto, os investigadores da ENSP lembram que "nenhuma destas freguesias se encontra nos circuitos turísticos de Lisboa".
"Portugal tem bons indicadores de risco epidemiológico em relação à covid-19, um sistema nacional de saúde com boa capacidade de resposta, boas opções de transporte aéreo, rodoviário e ferroviários e é um país democrático, de direito onde se cumpre a lei a ordem", dizem os médicos de saúde pública.
A nível nacional, no ano passado, os turistas ingleses representaram 19,2% das dormidas de estrangeiros em Portugal.
A tese defendida pela Escola Nacional de Saúde Pública justifica o número de casos de covid em Portugal (onde agora há um total de 44416 infetados, 29445 recuperados e 1629 vítimas mortais no país, segundo o mais recente boletim da Direção-Geral da Saúde), com os testes de despiste realizados. Os autores mencionam também que, desta forma, o número de confirmados aproxima-se mais do que noutros países do real, uma vez que estão a ser encontrados mais casos de doença ligeira ou até de assintomáticos.
Alexandre Abrantes e Vasco Ricoca Peixoto citam, incluvise, estudos realizados pelos Imperial College London e pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, onde se estima que Portugal detete cerca de 80% dos seus casos reais de infeção, "uma percentagem de casos muito superior a muitos outros países europeus", continuam os médicos.
"A política de testagem adotada por Portugal leva ao diagnóstico de grande número de casos assintomáticos ou com sintomas ligeiros, que passam despercebidos nos outros países europeus com políticas menos abrangentes", referem. "Só se encontra o que se procura".
Para além disto, os especialistas apontam ainda a capacidade de resposta do país em internamento e uma taxa de letalidade (3,7%) entre as mais baixas da Europa. Em Portugal, cerca de 96% dos doentes são acompanhados em casa. Atualmente, encontram-se hospitalizados 511 infetados, sendo que 76 estão nos cuidados intensivos.
"Nas últimas semanas, o aumento do número de casos de infeção não foi acompanhado por um aumento do número de internados ou de óbitos por covid-19. Isto pode refletir o aumento do diagnóstico de infeções em jovens, assintomáticas ou com queixas ligeiras, e uma proteção eficaz de populações com risco mais elevado de doença grave, nomeadamente as mais idosas ou com certas comorbilidades", acrescentam.