Manhã de um dos últimos dias de julho, Hospital de Santo António, do Centro Hospitalar do Porto (CHP). No bloco operatório, quatro salas estão preparadas para dois dadores e dois doentes que vão receber um novo rim. Portugal realizou o segundo transplante renal cruzado cinco anos depois do início do programa. Em breve, poderemos estar a fazer o terceiro, que poderá ser uma novidade: uma troca entre três pares. Solução para quando há um dador disponível para dar um rim mas não é compatível com a pessoa que quer ajudar. O programa procura pares na mesma situação e quando há compatibilidade avançam para a troca. Atualmente, há cerca de dois mil doentes em lista para receber um rim. A espera é em média de quatro anos..Com o relógio a bater meio-dia, Joana está de volta da cozinha a tratar do almoço. Recebeu um rim de uma mulher em troca do rim do marido, que quis ser seu dador mas não podia. O dele foi para outro doente, marido da senhora que acabou por ser a dadora de Joana. "Foi uma troca, mas para mim é como se fosse o rim do meu marido. Ele teve a boa vontade de me oferecer um rim. Mas não era compatível. Assim foi mais rápido", conta ao DN. Os ganhos são visíveis aos olhos dos dois. "Basta não ir à hemodiálise já é uma maravilha. Há mais qualidade de vida", diz. Os nomes são fictícios, para garantir o anonimato..Joana nasceu com um problema renal que se agravou após a terceira gravidez. Jorge não a queria ver assim. "A decisão foi espontânea, sobretudo quando há uma vida em conjunto há tantos anos", afirma. São mais de 40. "A equipa disse que tinha de ser transplante cruzado e para nós não faz diferença. Sinto--me satisfeito por ter corrido tudo bem e o que fica disto é o estado bestial em que ela está e olhar o futuro com mais alívio. Ela é que está de parabéns. A mim, o rim não me faz falta nenhuma", diz. Não termina sem realçar o "excelente trabalho" da equipa..Antes da intervenção, os dadores passaram por vários exames físicos e psicológicos. "Num dos pares, o senhor foi o segundo transplante. Assim que o primeiro órgão começou a falhar reentrou na lista. Mas era muito difícil porque tinha anticorpos quase contra toda a população portuguesa. No outro caso, a esposa receberia do marido, mas também tinha anticorpos por causa das gravidezes. Eram dois casos complicados. Cruzando, foi possível encontrar uma solução. Embora o senhor tivesse anticorpos em relação ao dador, eram muito menos do que tinha em relação à mulher, e por isso há menor risco de rejeição", explica o nefrologista Leonídio Dias, acrescentando que foi feito um tratamento para diminuir todas as possíveis resistências. O processo passa por retirar os anticorpos do plasma..Embora exista diferença de idades entre os casais, isso não é um problema. "Estamos a falar de órgãos de dadores saudáveis, com provas de esforço feitas e sem placas nos vasos sanguíneos", adianta o médico. Nos primeiros seis meses deste ano realizaram-se 28 transplantes de rim com recurso a dador vivo. No ano passado foram 53, ainda longe dos 64 de 2009. Só aumentando esta disponibilidade será possível sensibilizar dadores e doentes a entrar na lista de transplantes cruzados e aumentar as probabilidades de trocas..Rui Almeida, diretor do centro de transplantação do CHP, explica que "mesmo quando há incompatibilidades entre dador e doente, cruzando é possível dar um órgão" a quem precisa. "Estamos a falar de uma pessoa saudável e o tempo que medeia a extração do rim e o transplante é muito curto, o que é ótimo em termos de preservação da função do órgão", esclarece o médico..A responsabilidade não é maior por ser transplante cruzado, mas o sentimento é diferente quando se trata de um dador vivo. "Agora é o cirurgião a falar. Quando vemos alguém que tem um ato fantástico como este não nos conseguimos distanciar da carga emocional.".O objetivo é que a troca de órgãos seja também um intercâmbio entre hospitais, o que se espera venha a acontecer no próximo transplante renal cruzado. Neste caso, as cirurgias foram todas realizadas no Hospital de Santo António. "Foi preciso duplicar as equipas. Os dadores foram ao mesmo tempo para duas salas de bloco operatório. Foram precisos quatro urologistas, dois anestesistas e duas equipas de enfermeiros. Os órgãos foram retirados para laparoscopia, menos invasiva e que permite uma recuperação mais rápida. Os transplantes foram realizados de seguida, cada um em sua sala de operação. Neste caso foi a mesma equipa - um cirurgião vascular, um urologista e enfermeiros - que realizou um a seguir ao outro. Entre a colheita e os transplantes terão sido cerca de 12 horas. Está tudo a correr bem", refere Rui Almeida.