Portugal acusado de tentar eliminar Espanha da primeira volta ao mundo
Há 500 anos, a 20 de setembro de 1519, começava a primeira volta ao mundo, uma expedição espanhola concebida e dirigida pelo português Fernão de Magalhães, que morreu sem chegar ao fim da viagem, a 6 de setembro de 1522.
Um artigo publicado neste sábado no jornal espanhol ABC acusa Portugal de tentar branquear o papel que Espanha teve nesta circum-navegação, quer através do programa de governo para as comemorações dos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães quer da candidatura a património da UNESCO da Rota de Magalhães, uma das iniciativas do V Centenário, que decorrem até 2022 e serão apresentadas na próxima quinta-feira.
Essas iniciativas, referiu em 2018 a Estrutura de Missão das Comemorações do V Centenário da Circum-Navegação, pretendem "reconhecer o papel, passado e presente, de Portugal e dos portugueses para a promoção do conhecimento, do diálogo intercultural e da sustentabilidade do planeta, contribuindo para uma sociedade mais justa, inclusiva e com maior bem-estar".
Quanto à candidatura a património mundial reconhecido pela UNESCO - já desde 2016 que a Rota de Magalhães consta na lista indicativa de Portugal -, é dito que não há quaisquer referências a Juan Sebastián Elcano, o espanhol que acabou por terminar a viagem de Magalhães, depois de este morrer em 1521 nas Filipinas, nem "um reconhecimento patrimonial conjunto que contemple tanto Espanha como Portugal em harmonia".
Acrescenta-se que não é reconhecido "o papel preponderante [de Espanha] no feito" da expedição, em que se refere que o monarca português D. Manuel I havia rejeitado o financiamento para a viagem que acabou por ser prestado pela coroa espanhola, além de se recordar que Portugal tentou "com todas as armas evitar esta travessia".
Contactado pelo ABC, o Ministério da Cultura espanhol afirmou que irá solicitar nos próximos dias ao embaixador espanhol na UNESCO que elabore um pedido formal sobre a proposta portuguesa.
A classificação pela UNESCO da Rota de Magalhães não deverá acontecer, contudo, num futuro próximo, já que em março do ano passado apenas o Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, e o Real Edifício de Mafra passaram à fase seguinte da candidatura a Património Mundial.
Apesar das contestações expressas no artigo, recorde-se que, a nível institucional, em setembro do ano passado o então ministro da Cultura português Luís Filipe Castro Mendes e o seu homólogo espanhol José Guirao Cabrera anunciavam, em Lisboa, uma exposição conjunta sobre Fernão de Magalhães e davam conta da colaboração dos dois países nas comemorações.
"Cada país tem a sua respetiva comissão, que se reuniram na semana passada, e cada um está a elaborar o seu programa, e hoje, justamente, falámos disso, que as duas grandes exposições que se vão fazer em Espanha e em Portugal [se fundem] numa só exposição, e que essa exposição conjunta hispano-portuguesa seja a que viaje pelo mundo, para dar essa ideia de unidade, a par de outras atividades que se podem fazer conjuntamente e de que estamos a começar a falar", disse então o ministro espanhol.
"O feito de Fernão de Magalhães é um feito luso-espanhol", responde ao DN, contundente, o historiador José Manuel Garcia, autor de A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses (2007) e atualmente a trabalhar noutra obra sobre o navegador português. "Até direi mais: é um feito europeu, na medida em que Fernão de Magalhães foi acompanhado por 239 homens de seis nacionalidades. 10% eram portugueses, entre eles alguns dos responsáveis principais", continua.
Explicando como acabou por acontecer aquilo que foi uma espécie de casamento perfeito entre o génio de Magalhães e as intenções espanholas, o historiador afirma que "não há dúvidas nenhumas de que foi um empreendimento castelhano".
"Foi sob a alçada de Carlos V - na altura o rei Carlos I - que o empreendimento foi realizado, embora protagonizado por um português revoltado com o rei português [D. Manuel I]. Carlos V aceitou o serviço de um português porque ele era o único que podia fazer o empreendimento de ir às Molucas como ele se comprometera a fazer. Ao serviço dos portugueses Fernão de Magalhães nunca faria a viagem que fez", diz.
Essa viagem da nau Victoria, que acabou por completar uma viagem ao mundo, no final determinada por Juan Sebastián Elcano, "que tinha estado sempre na sombra, era uma figura secundária", deveria ter terminado com outro percurso que não daria a volta ao mundo. Aliás, essa volta implicou tornar a última parte da viagem ilegal e contra as diretivas de D. Carlos I, uma vez que implicava atravessar domínios portugueses.
Sebastián Elcano, reconhecido e celebrado em Espanha, mas não mais longe, "fez o feito de dar a volta completa ao mundo ilegalmente. Fernão de Magalhães morreu no caminho e os espanhóis, desesperados, tiveram de recorrer a uma solução que lhes estava proibida: o caminho português do cabo da Boa Esperança. Foi uma coisa de circunstância", lembra José Manuel Garcia, sem contudo deixar de notar que Fernão de Magalhães, mesmo tendo morrido antes do final da expedição, acabou por completar uma volta ao mundo e foi, aliás, o primeiro homem a fazê-lo, ainda que em duas vezes. "Porque ele já tinha feito a primeira volta da viagem, quando tinha ido com os portugueses de Lisboa até às Molucas."
O historiador reconhece a ironia de Portugal celebrar a circum-navegação que tentou a todo o custo boicotar. "Exatamente. Até lhe digo mais: o rei D. Manuel, quando soube que Fernão de Magalhães começou a viagem, mandou uma armada de cinco navios para a Índia, destinados a dar cabo dele, se o encontrassem nas Molucas", que, como se sabe, e afinal, pertenciam a Portugal, como Fernão de Magalhães terá verificado.
"Foi um empreendimento espanhol. Tratava-se de chegar ao arquipélago das Molucas por outro caminho distinto do português, que atravessava o Índico para chegar ao Extremo Oriente", disse ao ABC o académico espanhol Agustín Rodríguez González. O professor universitário e autor da obra La Primera Vuelta al Mundo (2018) acrescentou que os portugueses "enviaram barcos armados contra a expedição".
Juan Sebastián Elcano teve, aliás, de evitar as escalas, acrescenta Rodríguez González, com medo de ser detido. Apenas terá feito uma, em Cabo Verde, em que vários marinheiros foram detidos.
Enriqueta Vila, membro da Real Academia Espanhola, afirma que Portugal tentou como pode boicotar a viagem e que é "uma verdadeira ousadia tentar fazer ver que [a circum-navegação] foi uma obra" portuguesa.