Quando em 2018 foi pela primeira vez ao Encontro de Concertinas da Barrenta, Cátia Filipe sentiu que era dali. Não da aldeia ou da sede da coletividade, mas da música que a envolvia, de cada nota que saía do fole, daquela magia feita pela agilidade dos dedos dos tocadores. Depois, havia tudo resto: "imensa gente a tocar, muito mais a assistir ou a dançar, gente que não se conhecia de lado nenhum mas num convívio extraordinário". E ela, que em criança nunca tivera oportunidade de aprender música, mas sempre viveu com ela colada à pele, decidiu ali mesmo que haveria de aprender a tocar..Cátia fala ao DN à distância de uma mão cheia de anos, enquanto recorda esses primeiros passos. Começou por ir aos jantares da coletividade e aos ensaios do Grupo de Concertinas da Barrenta, desafiada por um colega de trabalho: Ricardo Pereira, o professor e um dos mentores do encontro que acontece este sábado. Naquele setembro de 2018 ninguém haveria de imaginar como a concertina viria a entranhar-se na vida de Cátia. Em março de 2019, emprestaram-lhe uma para levar para casa e ir treinando. "Foi como um bichinho, que nunca mais me largou", recorda, como se ainda agora sentisse "aquela alegria". Aos 31 anos, aprendeu tudo do zero: o método numérico que permite chegar às notas, primeiro com a mão direita (que dá a melodia) e depois com a esquerda, com a qual se introduz o ritmo. Sabia que não tinha a mesma destreza de um miúdo de dez anos, como tantos que agora povoam as escolas de música. Mas agarrou-se à concertina com tal determinação, que tocava "todos os dias um bocadinho, fosse o vira simples que aprendemos, ou a Rosinha, aquela música que todos os tocadores de concertina sabem". Esse é um hábito que ainda mantém. E habituou-se a ouvir as histórias de "colegas que quando começaram a aprender até emagreceram. Porque, de facto, a concertina requer destreza (mental e física) e esforço", já que falamos de um instrumento que pesa, em média, cinco ou seis quilos. Imagine-se uma arruada, e é fácil perceber do que fala Cátia, agora concentrada no Encontro deste 30 de setembro, para o qual estão inscritos mais de 50 grupos, com um número estimado de 500 tocadores, vindos de norte a sul do país, mas mais do norte, como está bem de ver..Na escola de música do Centro Cultural da Barrenta há agora cerca de 60 alunos. Do grupo de tocadores fazem parte mais homens que mulheres, um registo que é comum por todo o país. Elas são apenas oito, eles mais de 50. O mais velho tem agora 85 anos, e há vários meninos que mal sabem ler ainda, com apenas sete anos..Ricardo, o professor, também já era adulto quando foi aprender a tocar. É um dos 39 habitantes da aldeia da Barrenta, na freguesia de Alvados (agora agregada a Alcaria), no concelho de Porto de Mós. Nasceu para a música quase ao mesmo tempo que o Encontro de Concertinas, há cerca de 20 anos, num tempo em que "não havia ninguém da aldeia, nem próximo, que o tocasse". Mas ao ver os tocadores que vinham de fora, sentiu-se impelido a aprender. Dizem que é assim todos os anos, em que o Encontro acaba por deixar o tal "bichinho" a mais e mais pessoas. No ano passado foram mais de 15 mil as que passaram por lá. E por isso a organização do evento já obriga a uma logística considerável. Ricardo Pereira sublinha a importância do circuito "turístico", criado nos últimos anos, que leva os visitantes aos locais de interesse mais próximos, como Mira de Aire, Porto de Mós ou Fátima, a poucos km de distância. E assim, ao mesmo tempo que levam os visitantes a conhecer ou rever cada um desses pontos, enquanto facilitam o trânsito: "as pessoas entram por duas estradas e saem por outras duas", revela..Ao longo dos últimos anos, Ricardo Pereira observou todas as diferenças que foram ocorrendo "na maneira como as pessoas olham para a concertina, que naquela época - quando a Barrenta foi pioneira nos encontros - estava quase em vias de extinção". Não tem dúvida de que "hoje as pessoas olham para ela de outra forma, não só como o instrumento que toca nos ranchos, mas todo o tipo de música". E isso explica, em parte, a razão pela qual "nunca tivemos tanta gente nova a aprender". A música Cláudia Martins partilha também da mesma opinião. Há 25 anos que percorre os palcos de todo o país (e do mundo) com o projeto "Minhotos Marotos", que emana juventude e alegria. Fala ao DN a partir de New Jersey, nos Estados Unidos da América, onde se encontra em digressão desde a primeira semana de setembro. Também ela fez parte dos primeiros encontros da Barrenta, num tempo em que, além dos concertos, mantinha uma escola de música especializada na concertina..Aos 32 anos, soma já um quarto de século nestas andanças. E mesmo depois da licenciatura em Turismo ou da pós graduação, foi aos espetáculos que escolheu dedicar-se. "A concertina é um instrumento alegre, que afinal é muito fácil de pegar e tocar. O que noto, nos último anos, é que as crianças ficam fascinadas. Isso explica, em parte, o aumento de quem vai aprender, mas não só. A partir de 2011, os programas de televisão de domingo à tarde tiveram um papel crucial na divulgação da concertina, o que levou muitos jovens a aprender", sustenta a artista, nascida numa família de Guimarães em que os cantares ao desafio eram sempre acompanhados da concertina. Foi aprender a tocar aos 11 anos, tal como o irmão. Começou por fazer parte de um grupo "do qual já se formaram quatro", revela. E assim o sonho de ser bióloga marinha foi ficando pelo caminho. É em cima do palco que se realiza, num projeto que conta com 9 elementos: um trio de sopros, uma bateria, um baixo, as teclas e três concertinas. A seu lado, Tiago e Adriano, ainda mais novos que ela. Ver a concertina ganhar cada vez mais espaço deixa-a feliz, e o facto de "haver cada vez mais mulheres a tocar" também..Aos poucos, cada vez mais entusiasta se juntam à esquina, a tocar, fazendo a festa - como na Barrenta..dnot@dn.pt