Pode a matemática ajudar a melhorar o mundo?

Os cientistas dizem que sim. A pandemia trouxe os números para o centro das decisões da política e da saúde. Hoje assinala-se o Dia de Pi, ou seja, da Matemática. O DN convidou três especialistas - Henrique Leitão, Nuno Crato e Eduardo Marçal Grilo - a dar a sua opinião sobre o relevo da disciplina nos dias de hoje. Todos eles são também professores e integram uma bolsa de voluntários para apoio às crianças com necessidade de explicações ou crianças sem professor.
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Dia de Pi (3,14). Trocado por miúdos, é o dia de Pi porque é o mês três do ano e o dia 14 do mês. Este domingo é celebrado o Dia Internacional da Matemática, subordinado ao tema: "Matemática por um mundo melhor". Por cá, a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) organiza conferências nas plataformas digitais para chegar até aos alunos em segurança.

Neste ano de covid-19, muitos alunos ficaram privados do apoio à Matemática, como, por exemplo, as explicações, e a SPM criou, em parceria com a Fundação Gulbenkian, uma Bolsa de Professores Voluntários para dar apoio aos alunos mais desfavorecidos e com maiores dificuldades. Desta Bolsa fazem parte professores de todo o país e do estrangeiro - do Kansas a Bruxelas -, já que o apoio é dado em formato online. Por exemplo, na sexta-feira (dia 12) foram vários os professores e figuras públicas que estiveram em ligação com estes alunos a partir da Escola Marquês de Pombal, em Lisboa, onde existe uma grande comunidade de crianças necessitada de apoio.

Ao mesmo tempo que decorrem estas iniciativas em prol dos mais novos, a SPM assinala agora os 80 anos de atividade e quer reforçar deste modo a sua missão junto da sociedade civil. 2021 é um ano de muitos desafios, além da pandemia, e o presidente da SPM, João Araújo, diz ao DN que está preocupado com os resultados obtidos no ranking internacional (TIMMS) e também com o facto de, dentro de muito pouco tempo, cerca de 60% dos professores de Matemática atingirem a idade de reforma.

Leia abaixo os depoimentos de Henrique Leitão, Nuno Crato e Eduardo Marçal Grilo.

Há muitas razões para aprender Matemática. Saber fazer as operações básicas, saber calcular uma percentagem, conhecer as noções fundamentais de geometria ou de estatística, etc., tudo isto são conhecimentos matemáticos, elementares é certo, mas indispensáveis para o dia-a-dia.

Esta é uma boa razão. Claro que para as pessoas que têm atividades ou profissões mais técnicas, seja um eletricista ou um engenheiro, os conhecimentos de Matemática são ainda mais importantes. Também se pode estudar Matemática porque a sua aprendizagem ajuda a desenvolver certas atitudes mentais e a adquirir certos hábitos de raciocínio e de trabalho: a Matemática exige atenção aos pormenores, obriga a raciocínio analítico, exige alguma concentração. Tudo isto são razões para estudar Matemática, e boas razões.

Mas eu, que sou um historiador de ciência, gostava de dar ainda uma outra razão para se aprender Matemática, uma razão menos conhecida, mas talvez mais surpreendente. Estudar Matemática é ficar apto a compreender e participar de uma das mais importantes ideias na história da humanidade: a ideia de que o mundo natural - das galáxias e estrelas aos vulcões, aos oceanos, aos rios e reações químicas, etc. - só se compreende bem com números. É uma ideia surpreendente, antiquíssima e um pouco misteriosa. A sua origem remonta pelo menos ao século VI a. C., à obscura seita dos pitagóricos, mas a convicção de que os números e a geometria são a chave para a compreensão da natureza percorreu sem interrupções toda a História do mundo ocidental. A Idade Média esteve dominada pela ideia de que Deus criara o mundo "com conta, peso e medida", e por isso no ensino tinham um lugar proeminente as quatro disciplinas do quadrívio, Aritmética, Geometria, Astronomia e Música, todas de natureza matemática. No Renascimento, a ideia floresceu enormemente, e no século XVII teve em Kepler um dos seus principais promotores. Hoje em dia é uma das convicções mais centrais da ciência moderna. A natureza só se compreende em profundidade usando matemática: esta é, certamente, mais uma boa razão para estudar Matemática.

Em Portugal, a SPM tem sido um importante foco de promoção da Matemática, e, por isso, da manutenção desta ideia notável. E que em tempo de crise e aflição tenha vindo em auxílio das escolas, disponibilizando o saber e o tempo de muitos dos seus sócios, é um gesto que nos enche de admiração.

Quando se fala de Matemática, pensa-se em contas, mais ou menos complicadas, mas sempre em contas. Os matemáticos, contudo, não pensam em contas, ou não pensam sobretudo em contas. Contas são operações úteis. O importante é saber que operações se fazem, ou seja, o importante é perceber do que se fala e o que se quer.

Julgo que grande número de incompreensões e de reticências à Matemática, derivam desta visão. Quando se olha para a Matemática como uma linguagem que nos permite conhecer o mundo, as coisas iluminam-se.

Olhemos, por exemplo, para o papel A4 - um dos meus exemplos favoritos. O papel A4 não tem um formato muito bonito. Se atentarmos, por exemplo, em quadros pintados por grandes artistas, poucos ou nenhuns têm o formato A4. Se virmos as revistas, desde as de banda desenhada às noticiosas, como a Visão, vemos que nenhuma delas tem o formato A4. Porque se usa então o A4? Por uma razão simples, porque as suas proporções são tais que se mantêm se dobrarmos esse papel ao meio, ou em quatro partes, ou em oito...

Consequência: se eu juntar duas folhas A4 lado a lado e as reduzir numa fotocopiadora para metade, portanto para outro papel A4, vejo que cada uma das folhas originais passa a ocupar exatamente metade da nova folha saída da máquina de fotocópias. Isso acontece porque o papel A4 tem proporções especiais: um para raiz de dois (aproximadamente 1,4142).

O que é interessante em Matemática é formalizar e resolver problemas destes. Depois é o prazer de chegar a uma solução tão elegante: raiz de dois!

Na escola, a Matemática é importante por todas as razões: porque ajuda a ter uma visão rigorosa do mundo, porque nos treina para a vida prática, porque nos ajuda noutras disciplinas, porque é uma disciplina fundamental - estruturante, como muitas vezes se diz.

Por isso é importante não deixar a Matemática para trás! A Matemática, mais que qualquer outra disciplina, é cumulativa, ou seja, o que se aprende hoje é imprescindível para o que se deve aprender amanhã. Por tudo isso, o esforço que a SPM está a liderar para que a pandemia não deixe jovens para trás e para que muitos voluntários possam ajudar os jovens é um esforço importantíssimo!

Queria, em primeiro lugar, saudar a realização desta iniciativa e dizer que é com muito gosto e muita honra que a ela me associo e que faço esta brevíssima comunicação sobre a Matemática e sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática.

A Matemática é uma matéria estruturante de qualquer currículo, e é estruturante porque exige que os estudantes, e todos os cidadãos, disponham desta ferramenta, da Matemática, mesmo que não gostem da Matemática. Há muita gente que diz: "Não gosto de Matemática, não foi feita para mim." Estas pessoas, no fundo, todos os dias utilizam conhecimentos matemáticos, mesmo que de forma involuntária. Em primeiro lugar, esta nota sobre a importância que a Matemática tem como uma matéria estruturante do currículo da formação de base de todos os cidadãos. Em segundo lugar, a Matemática deve ter uma razoável prioridade, diria uma alta prioridade, no que respeita à forma como as escolas e toda a organização escolar tem para com os seus alunos, desde o início da escolaridade, desde o 1.º ano, até à idade adulta. A Matemática faz parte, e é muito relevante. A Matemática não deve ser considerada, e é preciso desmistificar um bocadinho esta ideia, como uma espécie de bicho de sete cabeças. Não é um bicho de sete cabeças. É uma matéria que, quando entendida, compreendida e utilizada, ganha até uma certa beleza, pela forma como as coisas se articulam, como as coisas se ligam entre si, a lógica que a Matemática tem, a beleza da geometria, a beleza de tudo aquilo que tem a ver com o cálculo e da resolução de problemas através da matemática. A Matemática é a base para muitas outras matérias: a Física, por exemplo, a própria Química tem uma componente matemática muito importante.

Agora, há uma questão que deve ser dita. Não nos enganemos: a Matemática implica dois esforços grandes. Um da parte da escola, dos professores. Cada miúdo, cada estudante, aprende da sua maneira, há que ter uma grande atenção às necessidades, dificuldades e potencialidades dos alunos relativamente a esta matéria. E, uma outra área, a do esforço do próprio estudante. A Matemática é normalmente uma matéria que implica muito trabalho, muito estudo, muita dedicação, muita persistência e muito empenhamento da parte dos estudantes. É uma matéria estruturante e prioritária, na minha perspetiva. Evidentemente que há outras matérias também prioritárias, não estou a ter uma ideia de prioridade absoluta para a Matemática, mas a importância que atribuo à Matemática leva-me a falar desta prioridade.

E ainda o que me parece ser uma espécie de voto final. Dizer o seguinte: vale a pena aprender Matemática, vale a pena que as escolas apostem na Matemática, que se organizem no ensino da Matemática, e, sobretudo, que sejam capazes de ter uma articulação vertical no ensino da Matemática. Ou seja, de ano para ano, haver uma coordenação, ligação e articulação entre os vários níveis, do primeiro ao último ano, seja o 9.º, o 12.º, seja o que for. E também no que respeita ao ensino superior, ao ensino pós-secundário. No sentido em que a Matemática é uma matéria que se adquire por sedimentação, são camadas sobre camadas, sobre camadas, em que o que se aprende hoje tem muito a ver com o que se aprendeu ontem e o que se aprende hoje tem muito a ver com o que se vai aprender amanhã.

A minha última nota é para cumprimentar todos - saúdo esta iniciativa como uma iniciativa muito válida e muito relevante. E dizer a todos aqueles que me possam escutar que vale a pena aprender Matemática e vale a pena utilizar a Matemática como um instrumento na nossa vida do dia a dia. Muito obrigado pela vossa atenção.

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