Planear, proteger e cuidar. O SNS e os pioneiros da saúde em Portugal

Em época de pandemia, as políticas de saúde pública são testadas até ao limite. Hoje com a covid-19, como há cem anos com a pneumónica, como há muitos séculos quando a peste e a cólera viajavam nos navios que aportavam às cidades e semeavam o caos.
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Quem hoje vê dezenas de velas em torno da estátua de Sousa Martins, no Campo Santana, em Lisboa, não imagina que o objeto de tamanha devoção popular foi, na verdade, um dos pioneiros da saúde pública em Portugal. A par de Ricardo Jorge, Câmara Pestana ou Ferraz Macedo, o médico, investigador e professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, bateu-se pela urgência de sensibilizar os portugueses para a ideia de que uma boa saúde começa com os cuidados de higiene. O que não era tarefa de somenos num Portugal analfabeto, supersticioso e paupérrimo, em que tudo faltava, até o mais elementar saneamento básico.

Neste mundo aparentemente tão diverso daquele, nota o historiador David Felismino (atual diretor adjunto do Museu de Lisboa), homens como estes (nomeadamente Ricardo Jorge, na altura inspetor-geral de Saúde) enfrentaram a pandemia da pneumónica com uma atitude perfeitamente visionária: "Puseram em prática as mesmas medidas que hoje estão a ser promovidas: referenciação de doentes e tentativa de identificação de focos de contágio, estabelecimento de quarentenas e cordões sanitários, requisição de espaços públicos para criar hospitais de campanha (em Lisboa foi o Liceu Camões) e de pessoal médico." O que mudou entretanto? "A velocidade a que a informação é recolhida e tratada, naturalmente, e também a quantidade bem superior de equipamentos de saúde públicos e privados, bem como de pessoal médico."

Sob a proteção da Santa Casa

O Estado como centro aglutinador das políticas de saúde, sejam elas preventivas ou terapêuticas, é uma tradição que vem de longe no tempo. Portugal, por exemplo, teve um dos primeiros sistemas assistenciais do mundo. Instituída em 1498 pela rainha Dona Leonor, viúva de Dom João II, a Santa Casa da Misericórdia tinha como incumbência o cumprimento de sete obras espirituais e sete obras corporais em favor dos mais desprotegidos. Entre estas últimas, contava-se o dever de "curar e assistir os doentes". Graças à ação, desenvolvida em conjunto com a iniciativa régia, surgiram, assim, os primeiros hospitais gerais do reino: Lisboa (1492), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520) e Goa (1520-1542).

Na capital, o Real Hospital de Todos os Santos, com a sua bela entrada manuelina voltada para o Rossio, era particularmente moderno para a Europa da época. Em maio de 1492, foi o próprio rei Dom João II quem lançou a primeira pedra, mas, como tantos outros projetos do seu reinado (incluindo a descoberta da rota marítima para a Índia), seria o seu sucessor, Dom Manuel I, a inaugurar, em 1504, a obra concluída. Àquele monarca ficar-se-ia também a dever o Regimento do Hospital, pensado em estreita colaboração com a "Rainha velha", Dona Leonor, que desempenha papel crucial (e pioneiro, não só em Portugal como da Europa) em toda esta história da assistência ao próximo e da saúde pública). Apesar da modernidade do equipamento, em breve a procura excedeu a oferta de camas e cuidados. Nessa época de epidemias e de pestes de regularidade quase sazonal, o hospital foi sendo objeto de sucessivas obras de melhoramento e ampliação para tentar dar resposta às muitas necessidades de uma cidade que o comércio internacional tornara, na expressão de Fernão Lopes, pouso de "muitas e desvairadas gentes".

Com os doentes separados em função do sexo, da classe social de origem e da patologia, o Real Hospital de Todos os Santos contava, nos anos imediatos à sua total destruição pelo terramoto de 1755, com 21 enfermarias, além de um serviço de urgência, de uma casa das boubas (divisão isolada para os doentes com sífilis, considerada doença vergonhosa pelo seu carácter venéreo), outra para as crianças expostas na roda e, finalmente, uma ala psiquiátrica muito literalmente designada por "Casa de Doudos". Inicialmente gerido por um provedor da confiança do rei, em 1564 também o hospital lisboeta, à semelhança do que se passava com a maior parte dos estabelecimentos de saúde em território português, se acolheu à proteção e gestão da Santa Casa da Misericórdia, que, aliás, dominaria todo o setor hospitalar até à segunda metade do século XX.

Os sistemas modernos de apoio na doença surgem na sociedade nascida da Revolução Industrial: primeiro, na Grã-Bretanha, com a constituição de associações de socorros mútuos ou mutualistas, nomeadamente entre a classe operária, mais tarde com o empenhamento dos Estados na formação dos primeiros sistemas de segurança social. O mérito do pioneirismo vai, neste caso, para o império alemão, que, em 1889, sob o governo de Bismarck, tomaria essa iniciativa. Seria seguido pelos britânicos, mas só 14 anos depois, quando a Europa já se aproximava do abismo da Primeira Guerra Mundial.

A viragem do século marca também a modernização dos sistemas de saúde pública, articulando, pela primeira vez, as funções e o trabalho desenvolvido por múltiplas instituições que até aí funcionavam essencialmente de forma casuística. Esse é, como nota David Felismino, o papel da Direção -Geral da Saúde (DGS), criada em 1899. "Esta instituição - afirma - acaba também por nascer da urgência de responder a uma situação muito concreta: a peste bubónica que assolou o Porto nessa altura, mas acabou por ser muito mais do que isso porque essa era já a sua vocação." David Felismino estabelece o contraste entre o que se passava até aí e o que a DGS vem estabelecer: "Logo no princípio do século XVIII, em Portugal, como noutros países europeus, existiam instituições criadas pelo Estado, como a Provedoria-Mor de Saúde, que, perante ameaças específicas, fazem o policiamento dos mercados, decretam quarentenas e cordões sanitários. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a epidemia de cólera em 1832, em que os navios britânicos foram proibidos de aportar em Portugal porque a maior parte deles vinha da Índia, que se considerava ser a origem do foco." O que a DGS vem criar é "uma articulação nacional, regional e local das estruturas existentes e coordenar a investigação científica, o tratamento quer preventivo quer terapêutico e a criação de regulamentos.

A criação do Serviço Nacional de Saúde

À imagem do que aconteceu na área da educação, com a reforma Veiga Simão, só no final do Estado Novo, durante o governo de Marcelo Caetano, é que o Estado chamou a si a responsabilidade pelo direito à saúde de todos e de cada um. Com um considerável atraso em relação à maior parte dos países europeus, a nova lei orgânica do Ministério da Saúde e Assistência (Decreto‐Lei n.° 413/71, 27 de setembro) avançava finalmente para a formação de uma rede estatal de cuidados de saúde. No entanto, as assimetrias regionais eram gritantes e, num país em que o abastecimento de água canalizada e de luz elétrica estava longe de chegar a todo o lado, não bastava um decreto para mudar a realidade. Até aí vigorara um sistema que no estudo História do Serviço Nacional de Saúde, coordenado por Raquel Varela e Renato Guedes, é caracterizado desta forma: "A Lei 1884, que definia a organização da previdência na aurora do Estado Novo, estatui quatro tipos de instituições: caixas sindicais, do povo e de pescadores; caixas de reforma; associações de socorros mútuos e previdência do funcionalismo público. Os descontos eram feitos segundo o método da capitalização. Isto deu uma previdência muito variável em função da capacidade económica de cada empresa, e do setor de trabalho, muito desigual, portanto." E mais adiante: "O "espírito de unidade" não significava outra coisa que a inexistência de previdência, isto é, argumentando o Estado com a não interferência estava de facto a beneficiar um lado."

A realidade só começaria, de facto, a mudar no pós-25 de Abril, com a Constituição de 1976, e com o seu corolário nesta área tão sensível: a Lei n.º 56/79, de 15 de setembro (também conhecida por lei Arnaut, já revista várias vezes, nomeadamente com a lei de bases para o setor, de 24 de agosto de 1990), que cria o Serviço Nacional de Saúde, no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais, enquanto instrumento do Estado para assegurar o direito verdadeiramente universal à proteção da saúde, nos termos da Constituição. Por universal entenda-se todos os cidadãos nacionais, independentemente da sua condição económica e social, bem como os estrangeiros, em regime de reciprocidade, apátridas e refugiados políticos. Quatro anos depois seria efetivamente criada uma rede nacional de centros de saúde.

Dessa transformação de fundo resultou, por exemplo, uma diminuição drástica da mortalidade infantil. Esta caiu de forma consistente e rápida de 77,5% em 1960 para 3,6% em 2009, resultando da melhoria das condições socioeconómicas dos portugueses e do acesso generalizado aos cuidados de saúde perinatais e pediátricos.

O curioso em tudo isto é que David Felismino nota que muitas das medidas consubstanciadas no pós-25 de Abril tinham, de algum modo, sido preconizadas nos primeiros anos do século XX: "Insistia-se muito na importância da missão pedagógica. Em 1901, Ricardo Jorge criou, no Instituto Central de Higiene, um museu em que se exibiam sanitas, pias, lavatórios e outras peças e se defendia a importância do saneamento público e dos adequados despejamentos urbanos." Do mesmo modo, o historiador recorda o trabalho dos dispensários para a infância ou da luta contra a tuberculose como precursores dos nossos centros de saúde. E conclui: "O nosso Sistema Nacional de Saúde é relativamente recente, mas assenta também no trabalho de todos estes pioneiros."

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