Pior que o expediente, só as desculpas

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Valha-nos Deus! - digo eu que nem sou crente. Mas há coisas que se leem e em que não se acredita. Contava o Expresso da passada semana que deputados insulares (aparentemente só Rubina Berardo assim não procede) quando chegam às ilhas vão à estação de correios entregar o comprovativo do bilhete de avião para poderem ter direito à comparticipação que os governos regionais dão aos locais que viajam de e para o continente.

Na Madeira, o subsídio de mobilidade estipula que o passageiro só suporte 86 euros (se o bilhete ficar aquém de 400 euros) com a compra do bilhete; e nos Açores, o viajante tem direito ao reembolso total dos gastos acima de 134. Estes apoios só se entendem, obviamente, para quem não tenha outros apoios estatais, o que não é o caso dos eleitos, que por serem dos arquipélagos recebem 500 euros extra por semana pagos pela Assembleia da República. Mas que fazem estes representantes do povo (à exceção da social-democrata Rubina Berardo, a única que disse ao jornal não ter idas semanais aos Correios)? Pois eles arrecadam o abono em Lisboa e... recolhem o subsídio ao chegar à terra.

Porém, o impensável expediente de socialistas, sociais-democratas (com uma honrosa exceção) e um bloquista não será o pior. O mais relevante foi o comportamento que tiveram quando confrontados pelos jornalistas. Se o chico espertismo nacional permitiria encarar estas manobras com um encolher de ombros e um desabafo ao estilo "olha mais uns", já o comportamento que tiveram quando o expediente foi descoberto é revelador de uma falta de humildade democrática verdadeiramente espantosa.

A começar por Carlos César, ex-presidente do Governo Regional dos Açores e líder da bancada rosa. Segundo o semanário, "exaltou-se" e disse tratar-se de assunto pessoal. Assunto pessoal a forma como um deputado recebe dinheiro do Estado? Este, sim, é um conceito muito pessoal. Só um enorme peso na consciência e a clara noção de que os seus eleitores não compreenderiam a situação pode explicar a "exaltação". Quem está tranquilo não se exalta, goza com o parvo do jornalista que coloca questões absurdas. Não era, porém, o caso.

E por isso veio uma deputada, açoriana e socialista, no dia seguinte, responder em nome dos seus companheiros, dizendo, entre outras coisas, que os voos entre ilhas não são pagos pela AR, que "cumprem a

legislação" e que "respeitam a resolução da Assembleia". Ousadia não falta. Certamente contraria o espírito do subsídio à mobilidade que não foi criado para quem já encaixa 500 euros do Estado por outra via. Dos socialistas da Madeira vieram justificações sobre o elevado preço dos bilhetes, dizem que muitas vezes estão acima dos 580 euros.

Entre os sociais-democratas, António Ventura disse não responder por haver "sempre muita especulação à volta destes assuntos", Carlos Costa Neves ficou calado, alegando motivos de saúde, e Berta Cabral e Sara Madruga da Costa não atenderam as duas dezenas de chamadas feitas pelos jornalistas nem responderam às mensagens. Paulo Neves tem um critério - que não explicou - e por isso umas vezes levanta o subsídio e outras não. Que critério terá?

O bloquista Paulino Ascensão confirmou que cobrava o bilhete em dois balcões e disse que o escândalo é o preço das viagens Lisboa e Funchal, que "entre setembro e dezembro" foi sempre superior a 400 euros. Mas não recebia 500 da AR? Percebeu agora o erro, demitiu-se e vai devolver o duplo benefício.

Era escusado deixar o Parlamento, agora que ganhou consciência. Para mim, as desculpas bastam. E talvez fosse melhor, dado que abandona os privilégios, ficar por S. Bento a bater-se pela redução das tarifas nas viagens para os arquipélagos. Agora, sim, iria sentir na pele este problema dos ilhéus.

O que mais impressiona é que deputados não sintam a obrigação de se explicarem sobre os dinheiros que recebem dos impostos dos contribuintes. Eu que não sou crente - já o disse -, mas até acredito em boas vontades, podia aceitar que os eleitos, apesar da sagacidade que terão, não se tivessem apercebido do oportunismo do procedimento adotado. Mas depois de ler as respostas que deram ao jornal, fica a certeza que transparência, prestação de contas e humildade democrática são conceitos que "não lhes assistem".

PS: Sem querer contestar o elevado preço dos bilhetes, sempre posso dizer que no passado domingo era possível marcar bilhetes de ida (sexta) e volta (segunda de manhã) por menos de 350 euros para o Funchal e 170 para Ponta Delgada. Basta consultar as ofertas online.

Jornalista

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