Pingyao: cinema para mostrar a China, educar o povo e corar espectadores
O mais emergente mercado de cinema no mundo já merecia um festival aberto para o mundo. Esse festival chama-se Festival Internacional de Pingyao - Crouching Tiger Hidden Dragon (o nome parte de uma homenagem a O Tigre e o Dragão, de Ang Lee) e existe porque o mais aclamado cineasta chinês acreditou na sua utopia. Jia Zhangke, conhecido de filmes como China - Um Toque de Pecado ou Natureza Morta, trouxe à sua região, Shanxi, um evento que finalmente abre o cinema chinês para o mundo e traz cinema do mundo para a China.
Um festival com um orçamento considerável que consegue trazer imprensa internacional (além do DN, o único jornal português presente, estão jornalistas do Brasil, Espanha, França, Reino Unido, Itália, EUA, Argentina e de toda a Ásia), cineastas, atores e indústria de todo o globo para fazer negócio. É um festival com curadoria de Marco Muller, um italiano que é poliglota e que já foi o diretor de Locarno, Roma e Veneza, uma das figuras mais carismáticas do circuito dos festivais e que sob sua alçada conseguiu transformar parte significativa da cidade velha dentro da muralha de Pingyao, uma das mais belas cidades históricas da China profunda, a cerca de 500 km. de Pequim.
E a cidade muda. Chegam estudantes universitários de toda a China e sente-se a juventude por todo o lado. Jia e Marco querem um festival para formar gosto, para educar o povo. Educação cinéfila que nesta segunda edição tem um ecletismo de propostas notáveis.
Marco Muller, fluente em mandarim, sabe que as mentalidades estão a mudar e que aos poucos é preciso mostrar na China filmes de arte e ensaio. Desafia a censura e há um cuidado em não passar filmes com violência extrema ou com subversão política. Este ano, garante, só exibiram filmes que não tiveram de levar cortes. Ainda assim, espante-se, está na programação Girl, de Lukas Dhont, provável candidato ao Óscar de melhor filme estrangeiro pela Bélgica. História de uma menina bailarina que nasceu no corpo de um menino que quer mudar de sexo e alimentar o sonho de dançar profissionalmente. Um filme belíssimo que venceu em Cannes (prémio Un Certain Regard) e em San Sebastián (prémio do Público) cujas cenas de nu frontal há uns anos seriam impensáveis ver na China.
Sinal de uma China que muda, como as próprias instalações do festival, uma antiga fábrica da motores a diesel e transformada em pavilhões que servem como restaurantes, sala de conferências, lojas, multiplex e um gigante cinema ao ar livre onde se vislumbra a imponente muralha da cidade. Trata-se de uma reconversão arquitetónica de respeito, capaz de manter as fachadas de pedra milenar e conservar um charme industrial, tal como ao lado um quarteirão de hotéis de luxo e lojas novinhas em folha. O cinema e o imobiliário ou arte e comércio sem medo de acusações de promiscuidade. Como se não bastasse, em termos de organização, as centenas de voluntários da região fazem das tripas coração para que nada falhe: sessões a começar a hora, sistema de projeção topo de gama, segurança visível e lesta na revista das multidões e um clima de festa.
Contudo, as festas têm música que varia entre o eurotrash e o hip-hop lambão "mainstream". Quem arrisca dançar só o pode fazer até às 1h da manhã. Regras da casa que incluem cerveja morna para os estrangeiros e água para a juventude cinéfila chinesa, que dentro das salas de cinema cora ruidosamente com cenas mais picantes. Aconteceu ontem na sala Plataforma quando Gaspard Ulliel despia Adèle Haenel em Un Peuple et Son Roi, de Pierre Scholler, fresco sobre a Revolução Francesa. Foi dos poucos momentos em que grande parte dos jovens tiraram os dedos dos telefones "espertos" e ficaram mais concentrados. O filme, esse, merecia melhor acolhimento. Tem um engenho simples mas composto para evitar os lugares comuns do "cinema histórico". Está feito com um gesto romanesco e incorpora uma coralidade que remete para uma ideia de musical. Numa fila para o café (que é quase tão caro como uma das cervejas mornas), o realizador contava-nos entusiasmado que o filme está adquirido para Portugal.
Mas a primazia do festival é revelar novos nomes do cinema chinês. Não é por acaso que Marco Muller idealizou duas secções só para o cinema da casa. Uma chama-se New Generation China e a outra Made in Shansxi, apenas com filmes da região. E o que se percebe é que continua um fosso estrondoso entre o cinema de autor feito na China e os seus "blockbusters" de "wuxia" e de valor épico e histórico, esses sim mais exportáveis. Alguém sabe quem é Cathy Yan ou Yang Ishu? Ainda não, mas a tal utopia de Pingyao é trabalhar esses nomes para fora. Daqui a uns anos, a China terá de saber consagrar mais talentos para além dos habituais Johnny To, Zhang Yimou ou Chen Kaige - não podem ser sempre os mesmos.
Ainda assim, é curioso circular pelos corredores do festival e ver como Jia Zhangke é uma pop-star junto dos chineses. Dá autógrafos, sorri, tira selfies e na loja de souvenirs do festival há muito mershanding de Ash is Purest White, o seu último filme, que algo injustamente saiu de Cannes de mãos a abanar. Um festival à sua imagem? Em Portugal não temos assim cineastas pop sem medo da popularidade. Na China, por ser um pouco anti-sistema, é um herói. Um feito de um dos nomes fundamentais do cinema moderno atual.