Pierre Boulez: "As polémicas animam a vida musical"

O DN republica uma entrevista a Pierre Boulez feita a 4 de maio de 2003 em Lisboa
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Figura fundamental da música da segunda metade do século XX, Pierre Boulez esteve em Lisboa para dirigir, no Mosteiro dos Jerónimos, o 13.º Concerto Europeu da Orquestra Filarmónica de Berlim. Minutos antes da hora, conversou com o DN

Celebramos este ano os 200 anos do nascimento de Berlioz. Sei que vai gravar em Setembro Roméo et Juliette e o ciclo de canções Les Nuits d'Été com a Orquestra de Cleveland. Foi sua a escolha e porquê estas?

Foi uma escolha minha, sim. Considero Roméo et Juliette uma das obras mais originais de Berlioz, em particular porque denota uma escrita orquestral absolutamente virtuosística e nova para a época. Passagens como o Scherzo da rainha Mab são ainda hoje muito difíceis de tocar! Quanto às Nuits d'Été, gosto muito dela porque é talvez a obra mais homogénea de Berlioz, aquela onde ele foi menos flamboyant e mais se aproximou duma poética doce e contida.

Também expressou o desejo de gravar o Requiem...

Aí o interesse radica mais no lado espetacular dessa obra, em especial pela forma como Berlioz utiliza os metais, que é realmente notável. São também as passagens onde ele é mais inventivo e que «compensam» outras onde ele adota processos mais académicos e tradicionais. É que a imaginação de Berlioz tinha necessidade de se apoiar no espetacular para ser mais eficaz.

Que avaliação faz hoje de Berlioz?

É um músico com um lugar à parte. Foi, por um lado, muito inovador e, por outro, se não reacionário, em todo o caso, não-progressista.Se consigo compreender as suas obras sinfónicas, ricas de imaginação, já não consigo perceber óperas como Les Troyens, que considero uma obra virada para o passado, em particular para Gluck, por quem tinha grande admiração. Berlioz não soube, ao contrário de Wagner, sublimar essa admiração para encontrar algo de novo. É muito curioso, isto, porque Berlioz e Wagner partilhavam admirações: Beethoven, claro, Mozart - este, em menor grau para Berlioz - Weber e Gluck, mas retiraram delas conclusões muito diferentes.

Considera que a vanguarda serial fracassou nos seus propósitos?

Não fracassou, antes transformou-se. Foi obrigada a transformar--se, porque era uma passagem... disciplinar, se assim o posso dizer. E, se estudámos a fundo muitas questões teóricas, não creio que tivéssemos, na altura, levado a linguagem aos seus limites. Por isso, creio que fazê-lo era uma experiência absolutamente essencial, na condição que depois «saíssemos». E penso que as principais personalidades dessa altura - Berio, Ligeti, Stockhausen, eu próprio, de resto - saíram. Mas foi uma fase essencialmente de transição e de disciplina.

[citacao:não penso que se possa reduzir o fenómeno da composição a considerações de índole técnica]

Qual é hoje a herança desse tempo?

A herança é uma espécie de imaginação criadora, mas que passou pelo crivo da disciplina. É por isso uma imaginação bastante mais forte, porque resistiu à «prova» da disciplina.

Considera que ainda é hoje possível eleger uma técnica composicional como a única esteticamente justificável?

Não, não creio. De resto, os nomes que há pouco lhe referi divergiram todos em direções extremamente diferentes. De resto, não penso que se possa reduzir o fenómeno da composição a considerações de índole técnica: há muitas outras coisas que aí entram, seja do ponto de vista estético, seja do próprio ponto de vista da combinatória das coisas. O que não quer dizer que a herança não seja ainda hoje forte. Quer tenham reagido positiva ou negativamente, todos tomaram a herança do serialismo integral em conta. Isto é claro.

Lamenta, hoje, os seus escritos panfletários e «tiradas» polémicas?

Não lamento, porque foram tomadas de posição. A polémica não pretende matar ninguém, mas sim animar, e isso justifica-as. Agora, do que eu não gosto é da inércia, da incapacidade de reagir. De resto, também se escreveram muitas contra mim e isso nunca me impediu de viver descansado. Acho que as polémicas agitam a vida intelectual e a musical.

[citacao: também se escreveram muitas contra mim e isso nunca me impediu de viver descansado]

Mas ainda hoje lhe são «atiradas à cara»...

Sabe, há muitas que já esqueci, porque estavam ligadas à actualidade da época. Outras há que ainda hoje reitero, por exemplo, as que desenvolvi contra as correntes neo-clássicas e neo-românticas.E veja que, olhando para trás, eu tinha razão, porque essas correntes nunca alcançaram o elã que tinham antes da II Guerra.

Olhando para o seu catálogo, nota-se a ausência de compositores franceses do entre-guerras, à excepção de Ravel. Porquê?

Simplesmente, porque não me interessam. Foi uma geração sem personalidades marcantes.

Sentiu necessidade de gravar o sinfonismo mahleriano no formato integral? Porquê?

Porque me interessava contrariar o que se diz correntemente de Mahler «ser» o passado, «ser» o romantismo e mostrar que há laços muito fortes entre ele e a Segunda Escola de Viena [de Schönberg, Berg e Webern]. Quero mostrar como, para lá do vocabulário, os territórios se aproximam, sobretudo entre Berg e Mahler.

Porquê a decisão de realizar a integral com orquestras diferentes?

Porque com uma só orquestra iria levar demasiado tempo até a terminar. Depois, acho interessante ter diferentes sonoridades de orquestra, diferentes culturas orquestrais...

Mas não arrisca uma certa desigualdade?

Penso que não. Acho que aquilo que eu quero é mais forte que eventuais diferenças.

A que acha se deve a popularidade actual de Gustav Mahler?

Ao facto dele ser uma figura de Janus: por um lado, virado para o presente - e para o futuro: Berg ou Webern - e, por outro, virado para o passado. Ele termina e assinala o fim dum época e do Romantismo e acho que a maior parte dos ouvintes estão mais ligados a esta sua faceta «passadista» que à outra.

A composição musical com recurso à electrónica em tempo real é uma via de futuro para a música?

Na minha opinião, sim. E é muito importante, porque há coisas que só graças a ela podem ser realizadas, por exemplo: micro-intervalos, espacialização, exploração tímbrica, expansão do ritmo, grande diferenciação na formação dos sons, etc. Isto duma forma muito precisa e transfomando o som dos instrumentos tradicionais. Portanto, isto abre todo um universo e obriga a pensar a música de outra forma.

A que se deve a sua preocupação com a precisão das orquestras com que trabalha?

Porque considero que o verdadeiro rosto da música só se revela com a precisão. Um perfil rítmico nítido e preciso é fundamental, mesmo para valorizar outras qualidades sonoras duma orquestra.

A precisão das orquestras melhorou?

Certamente. Há uma diferente consideração da interpretação que passa, mesmo que inconscientemente. Penso que a indústria do disco (digital) fez muito por isso, porque não se pode editar nada com defeitos.

Está prevista a gravação de todas as suas obras para a série «20,21» da Deutsche Grammophon?

Sim, progressivamente. Acrescentámos Dérives 2 recentemente e as outras irão seguindo.

O que pensa do minimalismo?

Como o nome indica, acho que é uma música minimal. Presta atenção a aspetos de linguagem que são interessantes - por exemplo, as desfasagens rítmicas -, mas o vocabulário dos minimalistas é tão limitado que amputa a sua música de certas dimensões, cuja ausência é injustificável para mim.

Os compositores devem aproximar-se do público?

Não. Para já, isso é uma utopia e, em segundo lugar, se me aproximo dum certo público numa dada época, quando o público e a época passam, as minhas obras não encontram mais correspondência, porque o seu potencial de comunicação se esgotou por completo. E veja, a história da música está cheia de exemplos destes.

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[citacao: o verdadeiro rosto da música só se revela com a precisão]

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