Petição para ilegalizar neonazis esperou sete meses para ser avaliada no parlamento
Uma petição, que conta com quase dez mil assinaturas (9573) e defende "a ilegalização efetiva de grupos de cariz fascista/racista/neonazi" esperou sete meses desde a sua entrada na Assembleia da República, em dezembro de 2019, até ser avaliada pela 1.ª Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias, no passado dia 7 de julho, e ser remetida para agendamento em plenário, o que só vai acontecer depois de setembro.
Os três primeiros signatários desta petição -que surgiu na sequência da organização de uma conferência internacional de neonazis em Lisboa, promovida por Mário Machado, ex-líder dos skinheads - foram ouvidos nesta comissão parlamentar e estão entre os dez ativistas que foram ameaçados pelo recém-criado grupo Nova Ordem de Avis (NOA): Jonathan Costa, da Frente Unitária Antifascista (FUA); Vasco Santos, coordenador da FUA, candidato do Movimento Alternativa Socialista (MAS) e dirigente do Sindicato da Função Pública do Norte; e Rita Osório, coordenadora da FUA Sul e membro da Plataforma Antifascista de Lisboa e Vale do Tejo (PALVT).
Em representação dos subscritores, Vasco Santos defendeu "medidas concretas quanto à propaganda nazi, neonazi, racista e fascista", sublinhou que a extinta Nova Ordem Social (criada por Mário Machado, ex-líder dos skinheads e condenado por vários crimes) "deu origem a novos grupos, que são perigosos" defendendo "a abertura de inquérito quanto a estes, apontando as ligações destes grupos a organizações paramilitares estrangeiras".
Segundo a súmula da audição publicada no site do parlamento, este ativista e sindicalista reportou tentativas de agressão ao peticionante Jonathan Ferreira da Costa (algumas noticiadas pelo DN) "baseadas em motivações políticas, nomeadamente ser contra a ideologia fascista e nazi".
Pretendem que "seja considerado crime público a agressão em contextos semelhantes a este, ou seja, com motivações racistas e políticas. Frisam a necessidade de salvaguardar apoio e proteção às vítimas nestes contextos, reiterando a perseguição de que são alvo".
Na audição receberam o apoio inequívoco das deputadas Beatriz Gomes Dias, do BE, e de Joacine Katar Moreira - ambas também na lista dos dez visados pela NOA. Beatriz Dias "defendeu que não se pode aceitar que existam grupos com exaltações de ódio e supremacistas que dominem o discurso político e o espaço público, pelo que o BE subscreve a petição e outras manifestações", segundo a mesma síntese.
Por seu lado, Joacine, de acordo com a mesma fonte documental, salientou que "estamos a viver em tempos de naturalização absoluta do discurso de ódio e uma tolerância enorme para com organizações que são simpatizantes de ideologia nazi, neonazi, fascistas, racistas, homofóbicas, misóginas", dando conta de que subscreve "na íntegra as inquietações manifestadas pelos peticionantes".
No seu entender "há uma absoluta desproteção dos indivíduos alvo de ataques racistas, homofóbicos, etc., sendo que a primeira motivação a aparecer é a do ódio racial". Salientou que "a petição é um oxigénio e um alento enorme".
A deputada do PS Isabel Moreira, que foi a relatora desta petição, assumindo-se como "antirracista convicta", lembrou que "as denúncias devem ser feitas ao Ministério Público e que as mesmas têm de ser fundamentadas em factos concretos".
Sublinhou que "uma coisa é o combate político, outra coisa é pretender que a Constituição da República Portuguesa (CRP) proíbe coisas que não proíbe, como a ilegalização dos adversários". Indica ainda a súmula da audição que "terminou, notando que não há palavras inconstitucionais e que a CRP salvaguarda a liberdade de expressão e a liberdade de associação".
Contactada pelo DN para comentar os recentes acontecimentos, face a esta posição, Isabel Moreira frisa que "o que aconteceu, as ameaças feitas àquelas pessoas, são evidentemente crimes e por isso estão a ser investigados pelas autoridades".
A deputada socialista, cujo relatório foi aprovado por unanimidade, sublinha que "não cabe aos deputados decidir a ilegalização de quaisquer organizações, essa é a função do Tribunal Constitucional. Quanto ao resto, o meu combate é político, de ideias. Não ando a tentar ilegalizar partidos, mas sim a combater as suas ideias. Não é inconstitucional ser racista ou homofóbico, mas se cometem atos discriminatórios ou crimes nessa base, serão as autoridades judiciais as competentes para os reprimir".
O porta-voz do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, confirmou ao DN que a petição deu entrada neste gabinete no passado dia 7 de julho e será enviada à conferência de líderes, para agendamento da discussão em plenário, logo no início dos trabalhos do parlamento.
Ao que o DN apurou, a maior parte dos dez visados pelas ameaças já foram ouvidos na Polícia Judiciária. Recorde-se que a NOA dava um prazo de 48 horas para estas pessoas se demitirem de todos os cargos políticos e saírem do país, prazo esse que terminaria nesta noite de quinta-feira.
A necessidade de proteção especial dos dez ativistas está a ser analisada pelo Serviço de Informações de Segurança (SIS), entidade competente para estas avaliações de risco.
Na quinta-feira, o Ministério Público instaurou um inquérito-crime na sequência das ameaças dirigidas a várias deputadas e ativistas pela autoproclamada "Nova Ordem de Avis -- Resistência Nacional". "Confirma-se a instauração de inquérito, no âmbito do qual serão investigados todos factos que vieram a público nos últimos dias", disse a Procuradoria-Geral da República à agência Lusa.
O jornal Público avança esta sexta-feira que o Governo contactou mesmo as deputadas Joacine Katar Moreira (não inscrita), Mariana Mortágua e Beatriz Gomes Dias (do BE) e propôs-lhes proteção policial especial na sequência das ameaças de que foram alvo. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, terá sido "intermediário" na oferta.
No último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), as secretas reforçaram o seu alerta para o crescimento das organizações de extrema-direita, que já tinham identificado também no ano anterior.
"Em Portugal, a extrema-direita tem vindo a reorganizar-se, reciclando o discurso, formando novas organizações e recrutando elementos junto de determinadas franjas sociais a que normalmente não acediam num passado não muito distante."
"Em Portugal, a extrema-direita tem vindo a reorganizar-se, reciclando o discurso, formando novas organizações e recrutando elementos junto de determinadas franjas sociais a que normalmente não acediam num passado não muito distante", registou o SIS.
Acrescenta que "a extrema-direita portuguesa deu primazia ao combate do que apelida marxismo cultural, numa tentativa de sensibilizar a sociedade civil ao seu discurso e ideário extremista, com vista ao alargamento da base social de apoio".
Do ponto de vista criminal, a investigação pode focar-se na prática dos designados crimes de "coação contra órgãos constitucionais", em que se incluem as deputadas Mariana Mortágua, Beatriz Gomes Dias e Joacine Katar Moreira, que prevê penas de prisão até cinco anos, juntamente com os crimes por "discriminação e incitamento ao ódio e à violência", que prevê penas de seis meses a cinco anos.
No passado mês de junho, o Ministério Público acusou 27 suspeitos neonazis, com base numa investigação da PJ que tinha 37 arguidos, indiciados por vários crimes de ódio, envolvendo grande violência, incluindo tentativas de homicídio contra negros, muçulmanos, homossexuais e comunistas.
Conforme assinalou ao DN o diretor da PJ, Luís Neves, numa recente entrevista, as investigações de grupos extremistas violentos têm estado na agenda desta polícia e constituem prioridade operacional. "Quando está em causa a prática de crimes e o discurso político sustentado no ódio e na sua apologia, torna-se evidente que temos um problema grave", afirmou.
"O ódio racial, político, religioso, de género, contra os imigrantes, tudo isto tem de ser reprimido. E não pode motivar um discurso e uma ação violentos e exacerbados. Nessa perspetiva, a PJ estará sempre na primeira linha de combate, quer do ponto de vista preventivo quer do ponto de vista repressivo", garantiu Luís Neves.
O diretor da Judiciária reconheceu que nas redes sociais "há um discurso inflamado, com perfis falsos e que não permite a identificação fácil de quem está por trás e procura um discurso divisionista, homofóbico, racista, xenófobo, contra a questão migratória" e, no seu entender, "é evidente que isso passa por um comando ideológico".
Quanto ao sucesso das investigações destes processos, Luís Neves assumiu que não é fácil. "Os limites estão consignados no próprio Código Penal, sobre quando há discursos de ódio que levam ao incitamento e à agressão. Não é fácil, quer do ponto de vista policial quer do ponto de vista da assunção do titular da ação penal e da magistratura, ver onde é que está a liberdade de expressão e onde é que, de facto, está a motivação com um discurso de ódio. Quando nós assistimos a perfis falsos, que maquinalmente só trabalham dia e noite para promover um discurso xenófobo, racista, é evidente que estamos perante pessoas que estão a procurar "deitar gasolina no que agora ainda é uma pequena fogueira".
No último relatório da Europol Te-SAT - Terrorism Situation and Trend Report 2020, que analisa também os extremismos políticos na União Europeia (UE), há várias referências a Portugal nesta matéria. Destaca o grupo de neonazis Blood & Honour, já banido da Alemanha, como dos "mais proeminentes" na UE, com "capítulos" (filiais) em Portugal.
Segundo a Europol, as autoridades portuguesas reportaram que "o capítulo nacional dos Hammerskin Nation (PHS) continuou as suas atividades" e que, "apesar de terem uma capacidade reduzida para mobilizar seguidores e membros, o grupo organizou outra edição dos European Officers Meeting em Sintra, em janeiro, e em março juntou em Lisboa várias gerações de skinheads, incluindo veteranos militantes do defunto Movimento de Ação Nacional (MAN) e antigos membros das bandas musicais Ódio e Guarda de Ferro, as quais tinham cessado as suas atividades há alguns anos".
Por seu turno, o relatório internacional Global Index for Terrorism, referente a 2019, dava conta de um aumento contínuo de mortes atribuídas a indivíduos de extrema-direita. Dezanove países da Europa Ocidental, da América do Norte e da Oceânia foram alvo de ataques desta natureza. De 11 mortes, em 2017, passou-se para 26 em 2018 e para 77 em 2019 (até setembro), um recrudescimento de 600%.
Esta tendência tem levado alguns analistas internacionais a concluir que este fenómeno não está a ser tratado seriamente e que as autoridades policiais e os serviços de informações ocidentais devem dar mais atenção a esta ameaça em expansão.
* atualizado às 09.00