"Ter um filho com cancro é um pesadelo", mas não ter capacidade de resposta para o acompanhar nesta luta durante o tempo que é necessário - porque os quatro anos que a lei permite nem sempre são suficientes para vencer a doença - ou não conseguir fazer face às despesas que a doença acarreta é "um drama" igualmente pesado..Quem o diz é a Associação de Pais Heróis no documento que entregou à Assembleia da República, no dia 9 de maio de 2017. O objetivo desta organização, fundada em 2014 por Adelaide Silva, mãe de uma criança com cancro, que faleceu em 2012, era precisamente alertar os deputados, o poder político e a sociedade em geral para o facto de estes "pais cuidadores precisarem de ajuda, de apoio, de assessoria", até para conseguirem processar toda a informação que os pode ajudar a resolver todas as burocracias, ao mesmo tempo que lutam com os filhos contra a doença..Quem vive ou já viveu uma situação destas diz que "os pais com filhos com cancro passam a ter duas vidas. A que fica em stand by e a que o cancro traz". O texto da petição n.º 316/XIII/2, que vai ser discutida em plenário, a 19 de dezembro de 2019, juntamente com mais quatro projetos de lei entregues por BE, PCP, PAN e CDS-PP, dá um retrato da realidade.."Há pais que deixam de trabalhar para acompanhar os filhos, sendo que alguns já estavam na situação de desemprego"; "há pais que não conseguem acompanhar os filhos nesta luta porque a lei só protege um dos progenitores"; "há famílias que ficam privadas de estar juntas durante meses porque os tratamentos do filho doente são a muitos quilómetros de distância". E muita outras situações. Cada caso é um caso, alguns dramáticos, dizem, mas os filhos estão em primeiro lugar. .O que não quer dizer, e como relata a associação no texto da petição, que estes pais cuidadores não se sintam abandonados. "É um dos maiores e mais graves problemas destas famílias, principalmente porque a legislação que existe não protege e não apoia o suficiente e porque as instituições que as deveriam apoiar não agilizam os procedimentos necessários." Por tudo isto, os pais heróis reivindicavam: "Queremos que estas famílias vivam com toda a dignidade e não apenas que sobrevivam à doença do seu filho.".Quando além da doença termina o tempo de licença para acompanhar o filho.No texto, a Associação de Pais Heróis destacava as situações que deveriam ser tidas em conta, desde a necessidade de alargar a licença para acompanhamento do filho para o tempo que a doença assim o exigir como para a questão das despesas que a doença traz e que, em muitos casos, não é possível sustentar..Segundo refere a associação, a doença oncológica pediátrica traz despesas acrescidas. Ou seja, mais medicamentos, uma alimentação diferente, deslocações da residência para os institutos onde as crianças têm de ser tratadas, muitas vezes a muitos quilómetros de distância de casa, o facto de as crianças, devido ao seu sistema imunitário, não poderem viajar em transportes públicos e ainda um tema que consideravam ter falhas, o ensino dado às crianças doentes que não podem ir à escola..É preciso perceber que para estes pais "deixam de existir prioridades, só existe o foco em o seu filho ultrapassar e vencer um cancro. Estes pais deixam de ter uma vida, passam a respirar a vida dos seus filhos, tornam-se transparentes. Estes pais precisam que cuidem deles...".Este era o alerta da Associação de Pais Heróis. O documento deu entrada na Comissão do Trabalho e da Segurança Social há dois anos e meio. Porque levou tanto tempo a ser agendado para discussão, não se sabe..A deputada do PSD Carla Madureira, eleita em outubro, e que agora é a relatora do processo, acredita que este prazo possa ser normal para situações em que há a necessidade de contactar muitas entidades, mas o que se passou ao certo também desconhece. "O assunto foi-me entregue em reunião da comissão, mas os trâmites que seguiu não sei. Não sei se foi preciso ouvir ministérios ou outras entidades. Se foi, só depois de todos estes procedimentos é que o assunto pôde ser agendado pela conferência de líderes para discussão", explicou. .Carla Madureira, do círculo de Aveiro, é professora de formação na área do ensino especial, soube pelo DN que a Associação de Pais Heróis tinha cessado as suas funções, após a morte da fundadora, Adelaide Silva. O tema em si diz-lhe muito e defende ser importante que "se olhe para a questão com mais sensibilidade, respeito e dignidade". Para a deputada de Aveiro, "a legislação deverá ser melhorada. É preciso que todos olhemos para o Código do Trabalho e se perceba o que é possível fazer para se introduzir os ajustes necessários para atenuar algumas situações", afirmou..E, à partida, há algo que considera essencial alterar: "A lei deve procurar um maior equilíbrio entre a proteção dada aos pais que trabalham no setor público e no setor privado. Os pais com filhos com cancro são os mesmos, independentemente de trabalharem no setor público ou no privado. Importa que esta questão seja analisada." .Lei n.º 71/2009 espera regulamentação há dez anos.Em Portugal, todos os anos há entre 400 e 450 novos casos de cancro pediátrico. A taxa de cura nesta faixa etária já atinge os 80%, mas ainda há casos de crianças que necessitam de mais tempo do que os dois ou quatro anos previstos para tratamentos..Margarida Cruz, presidente da Associação Acreditar, que apoia crianças e famílias com doença oncológica, salienta mesmo que "os casos que ultrapassam este tempo são em número reduzido, mas, quando tal acontece, tornam-se muitas vezes situações dramáticas"..Para a presidente da Acreditar é importante que este assunto seja debatido na Assembleia da República, pois um dos problemas que afetam pais, crianças e associações são as ausências de resposta por parte de muitas entidades oficiais aos apelos e às situações colocadas..Margarida Cruz chama ainda a atenção para o facto de muitas das questões que agora vão estar em debate e que integram os projetos dos partidos já constarem da Lei n.º 71/2009, que "espera regulamentação há dez anos". Uma das situações que era preciso resolver já o foi, a 4 de setembro deste ano, quando foi aprovado o artigo n.º 53 da Lei n.º 90/2019..Segundo explicou ao DN, este artigo alarga para seis anos a licença para acompanhamento do filho com doença oncológica, "o que é de facto muito bom", sublinha. Mas é preciso mais. "É preciso que o subsídio que os pais recebem tenha por base os 100% da remuneração que auferem e não os 65%", porque, reforça, "a doença traz despesas adicionais e muitas famílias não as podem suportar"..Mas entre a doença e as despesas há ainda a distância a que muitas destas famílias estão sujeitas. A lei só permite o acompanhamento por parte de um dos progenitores, dando-lhe uma licença de acompanhamento por quatro anos, direito a faltas justificadas ou a baixa por assistência a família..Se o outro progenitor quiser estar nos momentos mais difíceis, como diagnóstico ou recaídas, tudo depende da entidade patronal o permitir, quer seja através de folgas, férias, baixa, etc. Margarida Cruz defende que os dois progenitores deveriam estar presentes nestes momentos, "não digo que seja o tempo todo da duração da doença, mas a lei deveria dar a mesma proteção aos dois progenitores nos momentos-chave da doença"..À espera do Orçamento do Estado para 2020.Paula, mãe de Pedro, de 18 anos, que luta contra um neuroblastoma desde os 12, conhece bem todas as situações que aqui são relatadas. Trabalha na área da saúde. A entidade patronal apoiou-a quando a doença foi diagnosticada ao filho. O marido ficou em Santarém, onde residem, ela teve de alugar um apartamento em Lisboa para estar com o filho durante os tratamentos..Já lá vão seis anos, mas sempre que "ele ficava estável eu voltava sempre ao trabalho". Só que, a 1 de novembro, Paula completou os quatro anos que a lei lhe dá para acompanhar o filho. Pedro ainda precisa de mais tratamentos e ela não sabe o que fazer. "Pensei que a lei aprovada em setembro já estivesse em vigor, mas quando solicitei este direito a Segurança Social respondeu que ainda não estava. Só depois de o Orçamento do Estado para 2020 ser aprovado.".Por agora, Paula colocou os 30 dias de férias que ainda não tinha gozado e depois deve ir para uma licença de assistência à família de 30 dias, "mas se levar muito tempo a aprovação do Orçamento não sei como vai ser. Para estar com ele fico sem direito a qualquer apoio"..Paula e Pedro ocupam desde fevereiro um dos quartos da casa da Acreditar em frente ao IPO de Lisboa. "O que já nos ajuda muito", desabafa Paula, "mas não sei o que vai acontecer com o fim dos quatro anos, se calhar ainda tenho de me desempregar"..Paula não seria a única a ter de assumir esta decisão. Muitos outros pais já tiveram de o fazer para estarem neste processo com os filhos. Por isso, há muito que pais e técnicos que lidam com estas situações reivindicam o alargamento da licença de assistência e mais apoios para conseguir atenuar os seus efeitos. "Já basta a doença de um filho, o resto não deveria ser preciso termos de resolver", dizem..O que propõem os partidos.A petição vai ser discutida ao fim de dois anos e meio de ter dado entrada e quatro dos partidos com assento no Parlamento vão apresentar projetos..No seu projeto, o Bloco de Esquerda avança com o alagamento da parentalidade em mais de 60 dias para os progenitores com filhos com deficiência, doença rara ou oncológica, mas também com o pagamento do subsídio para assistência a 100% e não pelos 65%, como é agora. Mas propõe ainda a redução de cinco horas do período normal de trabalho em situações em que a criança ainda não tenha os 3 anos..O PCP é de todos os partidos o que vai mais longe, ao apresentar nove medidas no projeto que leva a discussão. E pede: "O aumento de 30 para 90 dias de faltas justificadas e remuneradas ao trabalho ou durante o período completo de eventual hospitalização, tratamento ou convalescença para assistência a filho menor ou independentemente da idade, no caso de filho com deficiência ou doença crónica"; "a criação de um subsídio para assistência a filho durante o período de hospitalização"; "a garantia do gozo em simultâneo para assistência ao filho por parte dos progenitores"; "o montante diário do subsídio para assistência a filho que corresponda a 100% da remuneração de referência do beneficiário e a 80% da remuneração de referência a outro progenitor"; "a garantia de que as situações de desemprego têm direito a um subsídio por referência ao último mês de remuneração". Mas o PCP propõe ainda a criação de um subsídio social para apoiar as famílias que não reúnam condições, bem como o direito a usufruir do subsídio de desemprego em gozo de licença para assistência ao filho, caso a empresa seja extinta ou o posto de trabalho..Já o PAN menciona no seu projeto a necessidade de alargar a licença para acompanhamento ao filho na doença para seis anos, uma situação que já foi alterada no artigo n.º 53 da Lei 90/2019. No mesmo defende a necessidade de os dois progenitores poderem usufruir de uma licença excecional para poderem dar assistência à criança em simultâneo e o montante diário do subsídio com base na remuneração de referência do beneficiário pelos 100%. Mas propõe igualmente a comparticipação das despesas de deslocação e de alojamento que a doença impõe..O CDS-PP propõe também que o período de licença parental aumente para 90 dias. Ou seja, acresça 60 dias aos 30 que são dados agora, no caso de nascimento de filhos com deficiência ou doenças raras. E defende o aumento do montante do subsídio para assistência ao filho..O PSD e o PS não apresentaram projetos. No entanto, e no caso dos social-democrata, a deputada Carla Madureira afirma: "Tal não significa que o PSD não esteja atento a estas questões que não queira melhorar estas realidades".. Na quinta-feira o tema vai ser discutido pelos deputados em plenário. Não se sabe se os projetos irão descer à Comissão Parlamentar do Trabalho e da Segurança Social para serem de novo analisados ou para sofrerem alterações. Mas o assunto agora está nas mãos dos deputados,