Pode a ciência responder a todas as nossas perguntas? E de que forma devem elas ser colocadas para se obterem as respostas certas, ou seja, as que melhor descrevem a realidade, a natureza e as suas leis? Para Peter Atkins, químico, professor jubilado da Universidade de Oxford, e autor de mais de 70 livros de divulgação científica - a Gradiva acaba de publicar o seu último, Como Surgiu o Universo -, a ciência é a forma certa de fazer perguntas. Foi isso que defendeu em Lisboa, na sexta-feira, na conferência Pensar o Universo (com os olhos da Química)", promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no âmbito do ciclo Mês da Educação e da Ciência, que está a decorrer até 23 de novembro em várias cidades do país. "Perguntas verdadeiras" são aquelas que conduzem à observação e, na acumulação de indícios, ao conhecimento. A ciência, que face à complexidade do universo, do mundo e dos seres, procura "a simplicidade de base", capaz de fornecer respostas, "é a única forma de compreender o mundo", diz. Já "a crença", garante, "é um produto do medo". E Deus? "Quando a ciência explicar o que ainda é desconhecido, não é necessário um Deus"..A ciência é um instrumento muito poderoso para compreender o mundo, mas haverá limites a esta compreensão? Penso que não. O método científico é um processo de acumulação de provas e de interpretação numa rede de conceitos. Não vejo porque haveria de existir um limite na sua aplicação. A chave é obter as provas fazendo observações. Isso é muito importante. As crenças religiosas surgem devido ao medo. Medo, por exemplo, do que acontece depois da morte, e coisas desse género. É por isso que as crenças surgem. E as perguntas então aparecem como uma extrapolação da experiência humana. Se há um objetivo na minha vida, então a existência do universo também deve ter um objetivo. Mas esta é uma extrapolação falsa..É falsa porquê? Porque não há nenhuma prova de um objetivo na existência do universo. Eu tenho um objetivo. Vim aqui [a Lisboa] com um objetivo. Mas não há nada que indique que o universo existe com um objetivo..Mas se a ciência quisesse investigar essa questão, como faria? Que tipo de prova poderia indicar um objetivo na existência do universo? As pessoas pensam que por o universo ser tão grande seria um desperdício não haver um objetivo. Uma pergunta só deve ser feita se for possível obter provas..Mas como não pôr as questões que todos temos e que são muito humanas, como porque existo ou porque temos de morrer? Esse é o meu ponto. Essas perguntas, iniciadas por um porquê, não são verdadeiras perguntas. Penso que só as perguntas começadas por "como é que" é que são as perguntas reais. Ou seja, a questão não deve ser porque estou aqui, mas como aconteceu eu estar aqui..Devem ser transformadas em perguntas às quais a ciência pode responder? Se não puderem ser colocadas de forma que a ciência possa responder, não são perguntas reais. Dê-me uma pergunta que eu possa transformar numa pergunta para a ciência..Há uma que quase toda a gente faz: será que Deus existe? É verdade, sim, muita gente faz essa pergunta. Mas não há qualquer indício de que Deus exista. Há um anseio de que exista, e um pensamento de base segundo o qual a natureza do universo só pode ser entendida se Deus existir. Mas se a ciência conseguir explicar como o universo passou a existir, então não é necessário um Deus..E a ciência poderá um dia explicar como surgiu o universo? Acredito que sim. Nós cientistas somos otimistas, ao contrário dos filósofos, que eram pessimistas [risos]..E quando poderá a ciência ter essa resposta? Não sei. Gostava que fosse antes de eu morrer [risos]. Gostava de entender essa questão..O que nos falta, do ponto de vista da ciência, para termos essa resposta? Muito. Não compreendemos a física da ausência do espaço-tempo, porque não temos essa realidade e portanto não podemos fazer essa física. Não compreendemos verdadeiramente a natureza de todas as forças, não compreendemos totalmente a composição do universo, não temos conhecimento sobre a matéria escura, não sabemos verdadeiramente o que é a energia escura. Portanto, há muita coisa que não sabemos. Mas, à medida que gradualmente vamos acumulando conhecimento, podemos estar confiantes de que com o tempo vamos conseguir chegar a uma resposta sobre como o nada se transformou em alguma coisa, para surgir o universo. Claro que poderemos depois não conseguir entender a resposta [risos]..O que quer dizer com isso? Poderá ser algo tão bizarro e tão alien que o funcionamento do cérebro humano não esteja preparado para o apreender. Alguns conceitos da teoria quântica, por exemplo, já são muito difíceis de compreender e isso é assim, talvez, porque os nossos cérebros foram formatados num ambiente clássico e não, obviamente, num meio quântico..Então poderá existir essa limitação, de não se entender o que se está a observar. Exatamente. Poderemos na mesma conseguir resolver as equações, mas não conseguirmos entender as equações para as quais encontrámos a solução. Ou seja, os conceitos poderão estar para além da nossa capacidade de compreensão..Nesse caso, o que poderá a ciência fazer? Continuar a trabalhar [risos]. Talvez treinar computadores para entender esses conceitos do mundo quântico, para depois eles nos darem respostas simples..Isso seria um mundo completamente novo? Sim, e poderíamos até ser excluídos dele, porque só os computadores entenderiam, e nós não..E que consequências é que isso poderia ter? Para nós? Humildade. Mas, claro, poderíamos estar aí a entrar num mundo perigoso, em que as máquinas fariam tudo melhor do que nós, incluindo no domínio da compreensão e do conhecimento..Quer explicar melhor? As máquinas já conseguem fazer quase tudo melhor do que nós. Estão, inclusive, a começar a ser criativas, a escrever poesia e a produzir música. Ainda não fazem ciência ou matemática original, mas isso poderá vir a acontecer..A nossa sociedade nunca dependeu tanto da ciência, nunca foi tão tecnológica e, no entanto, este é um tempo de proliferação de mentiras, de factos alternativos, de populismos. Não é uma contradição? Uma coisa é a ciência, outra é a política. É um problema da política, dos políticos, no sentido em que levam as pessoas a fazer coisas que elas não querem fazer. É política..E o que é que ciência e o conhecimento podem fazer para melhorar esta situação? Não sei. Mas pelo menos vamos preservar a ciência de populismos..Poderá haver um risco de o populismo afetar a ciência? Penso que sim. Nas vacinas, por exemplo. Há uma tendência populista contra as vacinas. Mas, sem as vacinas, as crianças morrerão e a ciência pode mostrar essas consequências. Como disse na conferência, a ciência é muito complexa, é preciso fazer esforço para a entender e há muita gente que não quer fazer esse esforço. Por isso é importante fazer debates como este, e é preciso iniciar as crianças na ciência logo a partir do jardim-infantil, para lhes mostrar desde muito cedo a beleza da ciência, como é divertida, e como dá prazer entender as coisas.