A literatura contribuiu mais para a minha formação política, para o meu percurso e atuação e inspiração, do que os ensaios e estudos que, nesse percurso, fui lendo para o sustentar..Não se trata de desconsiderar a ideologia ou a filosofia ou a ciência no robustecimento da ação política, na vontade de defender as políticas adequadas. Nem tão-pouco se trata de aderir a uma platónica visão da política, que vê nos números, nas contas, um empecilho à construção de utopias..Trata-se, isso sim, de salientar o radical papel da literatura na compreensão do humano, na averiguação da nossa natureza, do nosso sangue e veias e alma e ódios e ambições e segredos: o mistério humano é insondável, insuscetível de ser alcançado pelos relatórios e ensaios e contas, e unicamente consente aproximações, prospeções - que só a literatura consegue empreender..Ora, não há política que não dependa das pessoas, que não as sirva, que não lhes peça a confiança, que não lhes confira expectativas, esperança. Não há na democracia outra forma de suceder que não seja conseguindo responder às necessidades do humano, prevendo ou discernindo ou antecipa.do as motivações e os propósitos das pessoas, sintonizando-nos com elas. Sem a literatura, sem essa busca pelo mistério humano, sem essa cartografia das almas, a formação política estará sempre incompleta. As melhores ideias, as sustentadas políticas, os rigorosos discursos, serão sempre de menos se não conseguirem um eco, um ressoar, na alma daqueles a quem pedimos o voto, se não conseguirem entrelaçar-se com as suas angústias ou esperanças..E se não imagino o meu percurso político sem os ensaios liberais que me fizeram liberal, sem os autores que me fizeram elevar a liberdade individual a valor primeiro, sagrado, tenho plena consciência de que esse percurso, de que a visão que carrego, de que a forma como a procuro explicar e executar, deve muito, mais do que muito, aos autores que me ajudam a chegar ao outro, a compreendê-lo..Esses autores não têm responsabilidade na minha atuação, note-se. Nem as minhas ideias lhes poderão ser atribuídas, nem sequer como inspiração. Não é disso que falo. Falo do seu propósito iluminador, de que apenas me aproveito, e a quem devo muito..Tenho por isso uma enorme dívida para com a Agustina Bessa-Luís, porque nela encontrei um singular e sinuoso itinerário para a natureza humana, uma evidência da complexidade das nossas motivações, um sinal da contradição entre os nossos próprios instintos; e tudo isso me tem sido precioso, me tem feito assim..O que lhe devo é tal que, numa entrevista há uns anos, sobre os 40 anos do 25 de Abril, a referi como uma das mais importantes personalidades da nossa história contemporânea: não por ser uma das minhas autoras de eleição, a quem regresso vezes sem fim, mas porque há nela um encapsular de Portugal que é não só difícil de encontrar como me tem servido de útil instrumento para a compreensão de quem somos..Advogado