Pedro Correia, Ró-Ró para os amigos, é um exemplo de superação e amor ao futebol. Cresceu no problemático bairro do Casal de São José em Mem Martins, zona de Sintra, onde começou a jogar à bola. Hoje vive na luxuosa Tower Zone em Doha e joga pela seleção do Qatar, que nesta sexta-feira, com o defesa a titular, fez história e conquistou a Taça Asiática, batendo na final o Japão por 3-1. E já sonha com a participação no Mundial 2022 e com um duelo com a seleção portuguesa de Ronaldo.."Sou de uma família pobre, que passou várias dificuldades... aos 16 anos perdi a minha mãe e o meu mundo ruiu. Desde então foi uma luta constante para chegar onde estou hoje. Alguém que vem de um bairro pobre, como eu vim, raramente tem oportunidades na vida. Lá tens duas hipóteses, ou segues uma vida de crime ou o caminho certo e eu graças ao sonho de jogar futebol segui pelo caminho certo", contou ao DN Ró-Ró - a alcunha nasceu por causa da admiração pela dupla brasileira Ronaldo-Romário..Os primos e os irmãos (é o mais novo de sete, quatro rapazes e três raparigas) também jogavam e ele queria "seguir os passos deles". Aos 7 anos começou a jogar no Mem Martins e rapidamente chamou a atenção do clube do coração. "Fui para o Benfica e fiquei lá cinco anos, depois saí porque era muito pequeno, não tinha corpo para ser defesa, pelo menos foi o que me disseram quando decidiram emprestar-me, primeiro ao Estrela da Amadora e depois ao Estoril. Para mim sempre fui um dos melhores", explicou Pedro Correia, admitindo que se questionou se ia ou não dar jogador: "Quando chegas a um clube como o Benfica e te dizem que não serves começas a questionar se tens qualidade."."Felizmente" não deu ouvidos a quem dizia que era pequeno para defesa (mede agora 1,88 metros) e a quem o tentava desviar do caminho certo. Ele, como tantos outros jogadores que cresceram em bairros sociais de má fama, agradece ao futebol por o "salvar de uma vida má", que é como quem diz, de uma vida ligada ao crime: "O futebol, a família e os amigos salvaram-me de seguir por maus caminhos. Com a morte da minha mãe fiz-me homem mais cedo, mas não foi fácil, pensei em desistir do futebol, não tinha forças para sair de casa, ir treinar, jogar... nessa altura nem o futebol fazia sentido.".Com a morte da mãe, Pedro teve de se "fazer adulto à força" e em vez de abandonar o futebol arriscou por amor à bola. Tinha 16 anos quando decidiu sair de casa e ir sozinho para o Algarve. "Um colega meu falou-me da possibilidade de jogar nos juniores do Sp. Farense, no Algarve. Foi no Farense que me estreei no futebol sénior. De lá saí para o Aljustrelense, no Campeonato de Portugal, e de lá para o Qatar. Fiz três jogos no Aljustrelense, estava muito bem. Na altura, o Pedro Russiano jogava no Bahrein e indicou o meu nome a um empresário. Ele foi ver um jogo meu... até fui expulso nesse jogo, mas ele disse-me que tinha uma oportunidade para mim. Financeiramente não era nenhum oásis, mas para quem vem de baixo era muito boa.".Dois meses à experiência até ser escolhido entre dezenas de candidatos.Foi fazer testes ao Al Ahli, mas o clube só podia ficar com um estrangeiro e havia três dezenas de candidatos. O período de testes durou dois meses, mas "correu tudo bem" e Pedro foi o escolhido. Assinou contrato e deu rapidamente nas vistas. Ao fim de cinco anos mudou-se para o Al Saad, onde atualmente é treinado pelo também português Jesualdo Ferreira. Foi para lá por sugestão de Xavi, ex-Barcelona. Habituado a ver o médio na televisão, de repente estava a jogar contra ele e depois ao lado dele: "Ele jogou contra mim e no final do jogo disse-me que ia pedir ao presidente para me contratar. É o sonho de qualquer jogador. Como jogador, como pessoa, é um tipo dez mil estrelas. A idade não passa por ele, com a qualidade que tem, também como capitão ao nível do balneário é extraordinário.".Ao fim de seis meses no Al Saad perguntaram-lhe se queria jogar pela seleção do Qatar. "Estava a treinar e uma pessoa do clube veio-me dizer que o presidente da federação estava lá e queria falar comigo, depois ele disse que queria que eu jogasse pela seleção. Eu pensei "e porque não?" Já lá estava há cinco anos, sentia-me bem, gostava do povo qatari e era a oportunidade de jogar futebol ao mais alto nível, representar uma seleção e logo do país que ia organizar um mundial. Falei com a família e o empresário e naturalizei-me", contou o número 2 da seleção qatari, que se assume como "um jogador humilde, lutador, capaz de jogar como defesa central ou lateral direito"..Filho de cabo-verdianos nascido em Portugal tem agora dupla nacionalidade e o coração dividido: "Não é estranho representar outra seleção que não a de Portugal, é tranquilo e por acaso os adeptos receberam-me muito bem, gostam muito de mim por acaso." De repente, o Ró-Ró, que jogava na III Divisão portuguesa, estava com o Campeonato do Mundo de futebol no horizonte. "Quando jogamos futebol sonhamos sempre alto, queremos jogar num grande e chegar à seleção, por isso não posso dizer que nunca sonhei chegar onde estou hoje, mas claro que quando jogas na III Divisão e mal ganhas para te sustentares é difícil imaginares-te a viver em Doha e a jogar pelo Qatar", admitiu o jogador de 28 anos..Tomar banho de boxers e comer com as mãos.Adaptou-se bem, mas a língua foi uma barreira difícil de ultrapassar. Pedro mal falava inglês e muitos dos colegas só falavam árabe. "Foi complicado, mas com gestos e tal lá me fazia entender. Hoje fala um inglês fluente e alguma coisa em árabe. Já dou uns toques...", confessou o português. Para ele, o mais estranho é ter de comer com as mãos em alguns jantares: "Eles não usam garfo, nem colher. Uma vez fui jantar fora e tive de comer carneiro e arroz com as mãos.".E depois há aquelas coisas embaraçosas que o obrigaram a ter lições culturais em pleno balneário. "Depois do primeiro treino, fui para o balneário e despi-me para tomar banho. Em Portugal tomava banho nu. Ficaram todos a olhar para mim e eu sem perceber o que estava a acontecer até que um colega brasileiro me explicou que era pecado tomar banho despido em público. Eles tomavam banho de cuecas ou boxers e agora eu tomo banho de cuecas (gargalhada).".De resto a vida de Pedro em Doha é igual à de qualquer outro jogador de um outro país qualquer. Levar o filho à escola, ir treinar, descansar e estar com a família e aproveitar para espreitar Dubai e a Abu Dhabi nas folgas. A mulher e o filho estão com ele e plenamente integrados na vida do país: "A minha mulher já é quase qatari (risos) está cá há sete anos e faz uma vida normal e não anda de burca. As mulheres andam tranquilas no Qatar, não é tão rígido como as pessoas pensam.".Já a imagem do Qatar que chega ao Ocidente de que tudo é luxo... é mesmo como se imagina. "Com eles é tudo à grande. Por vezes conto coisas aos meus amigos e eles acham que eu estou a dar uma tanga... mas, depois, quando me visitam veem que é mesmo assim. Têm de ver para acreditar. Eles têm tudo, casas grandes, bons carros... é mesmo tudo à grande. Para mim que cheguei sem nada e não estava habituado a ver tanto luxo ainda custa a acreditar. Hoje felizmente posso ajudar a família e os amigos, dar ao meu filho aquilo que eu não tive", revelou Pedro Correia..Sempre que pode, Pedro foge para Portugal e para o bairro Casal de São José. E sempre que lá vai e um miúdo lhe diz que quer ser jogador ele responde: "Nunca pares de lutar pelos sonhos e se tiveres uma oportunidade agarra-a com toda a força como eu fiz, não te deixes seduzir por outras vidas, aposta no futebol.".Taça da Ásia e Mundial 2022 no horizonte."O povo do Qatar está eufórico" com a realização do Mundial 2022, segundo Pedro Correia. "Há imensas mudanças, obras por todo o lado, estádios grandes, como o nosso, por exemplo, o único do mundo com ar condicionado, o metro, novos hotéis, eles estão a fazer um investimento é brutal", garantiu o jogador sem dúvidas: "Vai ser um mundial espetacular. Eles estão a dar tudo como se diz no futebol... o futebol tem evoluído bastante, têm feito um grande trabalho na formação, nas escolas, nas academias...".Sendo ele português, as conversas com adeptos e mesmo colegas vão sempre parar a Cristiano Ronaldo. "Oh pá, eles adoram o Ronaldo e querem sempre saber se o conheço e eu digo que não, é a verdade", atirou Ró-Ró, que não se importava nada de jogar um Portugal-Qatar: "Ia ser uma emoção muito grande, mas ia querer ganhar. Eu estou pronto (risos).".Nesta sexta-feira jogou a final da Taça Asiática, frente ao Japão, e ganhou o primeiro troféu pela seleção. Algo que já estava no seu horizonte quando falou ao DN ainda antes do jogo decisivo. "Está a ser uma experiência fantástica. Já fizemos história, é a primeira vez que o Qatar chega à final numa competição deste nível. Tem corrido bem, ainda não perdemos nenhum jogo e não sofremos nenhum golo", revelou..O adversário da final é "forte" e já conta com vários troféus, mas nada que assuste os qataris: "A história do Japão é boa, já ganhou várias vezes, tem boa equipa e bons jogadores, mas nós estamos bem e motivados, estamos prontos para uma final. Se correr tudo bem ganhamos, se não ganharmos vamos ficar felizes na mesma pela nossa campanha na prova. Ganhamos sempre." A verdade é que nesta sexta-feira as previsões bateram certo. O Qatar venceu na final o Japão, por 3-1, e conquistou pela primeira vez na sua história a Taça Asiática..Notícia publicada no dia 31 de janeiro e atualizada a 1 de fevereiro.