Paradigmático, realista e experiente, o diretor da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária trouxe ao podcast Soberania, uma parceria DN / Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), uma boa dose de otimismo para um tema onde ele, normalmente, é parco: a luta contra a corrupção..Ouça o podcast aqui:.Pedro Fonseca apresentou números, casos, exemplos que, no seu entender, o demonstram, e também desafios para travar este desígnio que o seu diretor nacional, Luís Neves, já tinha elevado ao estatuto de "combate pelos direitos humanos".."Estamos a mudar a estratégia em termos de recursos humanos, quer ao nível da dotação, quer ao nível da formação especializada, quer ao nível do trabalho multidisciplinar holístico de equipa, porque já há muito ultrapassamos nestas matérias os tempos do Sherlock Holmes e do Poirot. Trabalhamos hoje em sinergias com a Autoridade Tributária, com a CMVM, com o Banco de Portugal, com uma série de parceiros que fazem parte de equipas estratégicas de investigação multidisciplinares e estamos a mudar essencialmente também a fasquia e o alcance da nossa intervenção", garantiu..Acautelando que a sua participação no podcast podia "não ser diplomática" e que poderia "quebrar o status quo habitual" falando de "casos concretos" explicou como investir na PJ tem retorno certo para o Estado.."Desde há muitos anos, tenho acompanhado e assistido aos efeitos positivos e negativos das altas autoridades, dos conselhos de prevenção, agora do Mecanismo Anticorrupção, enfim, dos pacotes. Tenho para mim como bom que o verdadeiro pacote anticorrupção que podemos e devemos instalar é o de uma estrutura de prevenção, que também é uma das competências da PJ, e de repressão que seja absolutamente sólida, que tenha estofo, que tenha músculo. Porquê? Porque os efeitos da prevenção geral decorrentes de atuações são exponenciais"..E apresentou os prometidos exemplos. "Quando definimos a estratégia de combate à corrupção e à fraude no setor da saúde, recordo-me do ministro da altura (Paulo Macedo) dizer, numa linguagem civilista, que em termos de lucros cessantes e danos emergentes às organizações que, dentro do setor da saúde, atacavam o erário público e punham o Estado a financiar o crime e a financiar organizações, verdadeiros sindicatos de crime setorial, através da fraude, da corrupção, designadamente comparticipando em milhões, atos médicos e meios complementares de diagnóstico putativos, a estimativa de recuperação foi de 300 milhões de euros", recordou..Outro exemplo, a recente "operação Admiral", o "maior caso de fraude da União Europeia (UE). "Eu trouxe por curiosidade alguns números dessa operação. Houve cerca de 24 detenções em Portugal, Itália e França, 312 buscas feitas em simultâneo no espaço da UE, 67 milhões de euros apreendidos, só nesse dia, nessa operação, em 529 contas bancárias. Foram 9 mil empresas implicadas nas transações intracomunitárias fictícias, cerca de 600 suspeitos estimados e transações fraudulentas superiores a 2,2 mil milhões de euros. (...) A pergunta que faço, que é uma constatação, é muito simples: é perceber que tipo de estrutura temos de ter para combater este tipo de dimensão, na ponderação do custo-benefício. Por isso há pouco falava de um investimento, não de uma despesa"..Pedro Fonseca destacou que "de 2018, aos dias de hoje, a UNCC aumentou 40% do seu efetivo e caminha para ter este ano mais 40% do apoio e do suporte pericial do que tinha precisamente nessa altura. Porque era ridículo em 2018. Não se ataca o crime de milhões com tostões, como se disse na sede própria. Estamos a falar de subidas exponenciais de meios que são meios humanos alocados, de facto, a um combate"..O otimismo: "Temos o suficiente para com estratégia, com meios adequados, combater de forma a que aconteça aquilo que os alemães no direito penal chamam o auto-acalmamento dos demais, o funcionamento da prevenção geral"..E um aviso: "a privação de liberdade, num caso de criminalidade desta natureza, não pode ser o único foco. O foco tem de estar também numa outra dimensão da punição: o esvaziamento patrimonial dos arguidos (...) Para a Europol, ao nível da criminalidade organizada de natureza financeira, o produto do ilícito é qualquer coisa entre 218 e 282 mil milhões de euros. O reverso desta medalha, é que a apreensão (pelas autoridades) representa 2% e o confisco 1%. O lucro é colossal e vai parar ao reinvestimento no crime organizado e ao seu crescimento". Por isso, "para mim, a principal forma de lutar contra esta realidade, é esvaziar patrimonialmente estas estruturas. É a apreensão inicial, o congelamento, e o confisco final, que é uma reversão para o Estado"..Foi a deixa para Ana Gomes. Sublinhando que "estamos a trabalhar com um setor em que a própria evolução da digitalização deu instrumentos poderosíssimos à criminalidade organizada que muitas vezes os Estados não têm e vão a correr atrás do prejuízo, designadamente os setores da investigação criminal", considera que "não temos suficientes mecanismos, nem de perto nem de longe" e não duvida de que "temos um problema que é uma justiça para ricos e uma justiça para pobres"..Argumenta que "se formos analisar a maior parte dos casos" (que antes tinham sido elencados por Pedro Fonseca como bons exemplos e cerca de 95% de condenações), "podemos verificar que a maior parte das condenações são de gente com poucos recursos para se defender, e os casos de arquivamento, se calhar, muitos deles foram feitos à conta das prescrições, porque é um sistema híper garantístico que facilita que os com meios, com poderes, recorram a todos os recursos e utilizem todos os meios para postergar e evitar sequer sentar-se no banco dos réus. Estamos a falar num momento em que muita gente está a admitir que, por exemplo, os casos politicamente mais sensíveis, como é o caso da Operação Marquês, e por outro lado o caso do BES, possam justamente vir a prescrever"..Nessa medida, e alinhando com o diretor da UNCC, "o instrumento essencial nem sequer é o acenar com o ir parar à cadeia, é justamente a esvaziamento do património, isto é, a chamada perda alargada de bens em favor do Estado, o confisco"..Lamentou que "uma diretiva europeia, feita na base daquilo que os italianos aprenderam com o combate à máfia, que se centra exatamente na importância da perda alargada imediata do património em favor do Estado" não esteja coberta na legislação portuguesa, porque não se quer"..Este diploma, que a militante e ex-eurodeputada socialista, Ana Gomes afirma ter sido "mal transcrito, e não foi por acaso", para a legislação nacional, "previa a possibilidade do Estado, sem estar à espera de uma condenação transitada em julgado, poder imediatamente agarrar o património que identificou como alvo de crimes de corrupção, independentemente de se vir a verificar quem é que, efetivamente, foi o responsável. Esse património não seria dissipado" contrariando "o esquema que hoje temos em Portugal, que favorece a dissipação do património. Estamos a ver o património do BES, que foi alvo de arresto, a estar a ser vendido pelo preço da uva mijona e não me admiraria que fosse a muitos testas de ferro da própria família de Ricardo Salgado, que obviamente tem a boa parte do património fora do país e que vai passar, mesmo que independentemente de Ricardo Salgado se vir ou não a sentar no tribunal, vai passar branqueada para os familiares, para outras gerações"..Esta ativista anticorrupção, subscreve as palavras da ex-Procuradora-Geral de República, Joana Marques Vidal, que alertou, já em 2015, para "uma rede que utiliza o aparelho de Estado para corrupção".."Não é uma rede, são várias redes de captura do Estado e não podemos ser inocentes em relação a isso. E essas redes trabalham para utilizar estes mecanismos, designadamente a prescrição. E há falta, muitas vezes, de coragem política, a um nível político e a um nível dos agentes da própria Justiça", afiança..Deu como exemplo a "Operação Fizz". "A Justiça fez o seu trabalho, mas o governo foi negociar com Angola. (...) Foi já condenado por corrupção um procurador da Justiça, mas o corruptor, que era vice-presidente de Angola e sobre o qual se aceitou a ideia de que estava abrangido por uma amnistia, obviamente expressamente feita em Angola para o proteger, essa amnistia até já terminou e não vi o Estado português fazer o que quer que seja para ir à procura do corruptor. Estou convencida de que o dito corruptor hoje tem meios de investimento em Portugal, maiores até do que já tinha nessa altura, através de testas de ferro, controlando setores licenciais como, por exemplo, a comunicação social, e nada foi feito. O poder político protegeu. (..). E o dito procurador, em tribunal, apontou outros cúmplices, até outros intervenientes decisivos no processo de corrupção. E o que é que as autoridades judiciais fizeram? Não convinha. (...) , é também dos setores profissionais, criminais, que não sentindo as costas quentes, também não se afoitam a fazer o que deviam", asseverou..Pelo OSCOT e pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Rute Serra é especialista na prevenção. Aplaude "a criação do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) que, no seu entender "deu, sem dúvida, um sinal positivo à sociedade, sobre as intenções do poder político para prevenir e também reprimir este fenómeno"..Lembra que o "pacote anticorrupção aprovado em 2021 (a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção) surgiu como uma resposta a recomendações de várias organizações internacionais, como é sabido, o Greco, a OCDE, as Nações Unidas, entre outras"..No entanto, adverte que "pior do que um organismo que não existe, portanto, não ter sido, neste caso, criado o MENAC, é termos um organismo que está paralisado por uma ineficácia administrativa ou inoperante por uma deficiência estratégica. Porque temos um organismo que está instalado há um ano e sobre o qual fizemos uma campanha na televisão durante um mês ou dois e não conseguimos sequer falar, não tem um site, não tem qualquer visibilidade, não tem um meio de contacto"..O podcast Soberania convidou também o presidente do MENAC para este programa, juiz conselheiro António Graça, mas este não esteve disponível..Rute Serra sublinha que "o grande papel do MENAC vai ser a articulação de todos os organismos, nomeadamente entidades públicas, mas também privadas, naquilo que é o desígnio último, que é a prevenção e o combate de fenómenos corruptivos", bem como "a grande inovação que é ter um quadro sancionatório pela primeira vez"..Este novo quadro, assinala esta perita, "vai ser gerido pelo MENAC que, portanto, tem que rapidamente perceber como é que vai executar as suas competências"..Esta investigadora considera que "não há falta de legislação" no combate à corrupção, mas questiona a sua "real eficácia". "Veja-se que, quer relativamente ao regime geral de prevenção da corrupção, quer relativamente ao regime geral de proteção de denunciantes de infrações, mais de um ano depois da sua publicação e da sua entrada em vigor, praticamente, estas são leis que continuam por regulamentar", afiança..E conclui com um desafio ao poder político: "Toda esta legislação faz uma transposição daquilo que já eram os chamados programas de compliance das empresas privadas para o setor público. Portanto, programas de cumprimento normativo no setor público. Convidaria os próprios partidos políticos que legislam sobre estas matérias a constituírem no seio das suas organizações, departamentos de compliance. Por que não?"..Ouça o podcast: