Quando chegou a Katmandu, a capital do Nepal, Pedro Bento tinha à sua espera um grupo de crianças que gritavam o seu nome com cartazes de apoio nas mãos. Acreditaram que o ciclista português, que partiu de Almeirim a 13 de abril só com a sua bicicleta, ali chegaria a pedalar. E assim foi. Setenta e um dias depois, Pedro Bento chegou ao orfanato nepalês para conhecer as crianças a quem doou bolsas de estudo, com o dinheiro angariado pelos quilómetros que fez ao passar por 14 países..Entre as crianças estava o príncipe do Butão [pequeno país no meio dos Himalaias], Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, que atrasou o passo de regresso a casa quando lhe explicaram o motivo do ajuntamento, indicaram a Pedro Bento mais tarde. "Ele quis esperar que eu chegasse para me dar a sua bênção", diz. "Os indianos e os butaneses dizem que ele é uma reencarnação de um professor indiano que morreu há 823 anos. É procurado por milhares de pessoas que querem ser abençoadas por ele e eu sem o procurar acabei por receber a sua bênção.".Ainda ficou em Katmandu mais uns dias. Aproveitou para conhecer a casa criada pelo português Pedro Queirós para alojar e apoiar pessoas afetadas pelo sismo de 2015 no Nepal, associada ao projeto Dreams of Katmandu, onde vivem Mingmar e Tenzing Sherpa, de 13 e 10 anos respetivamente. Os dois jovens a quem Pedro Bento vai pagar os estudos com o dinheiro angariado na campanha de crowdfunding. Com os quase 11 mil euros que conseguiu comprou ainda materiais escolares a outra criança, levou oito jovens da mesma casa pela primeira vez na vida a uma piscina, vai entregar dez fatos novos aos bombeiros de Almeirim e contribuir para uma bicicleta adaptada para um ciclista tetraplégico..Pedro Bento criou "uma ligação muito especial" com as famílias vítimas do terramoto, quando teve oportunidade de ver o trabalho da organização no terreno na altura em que foi ao Nepal, em 2016, para fazer a prova de BTT com maior altitude do mundo (5416 metros de altura). Agora de volta, conheceu ainda a escola e falou com o diretor sobre o plano curricular.."Nós em Portugal queixamo-nos de que a escola não tem um parque infantil. Eles não têm nada", refere o ciclista de Almeirim. "Mas são muito aplicados, porque têm noção de que é a única forma de saírem daquela situação.".As paisagens da Croácia e a pobreza da Índia.De Almeirim ao Nepal, o ciclista de 40 anos passou por 14 países e fez um total de 9940 quilómetros (cerca de 130 mil metros de acumulado, distância na vertical). Ficou em casa de pessoas que o acolheram e em pousadas, algumas não lhe cobraram a estada quando percebiam o motivo da sua passagem - poupando-lhe o dinheiro do seu bolso que gastou na viagem (quase quatro mil euros). Não foi exigente com o colchão, tendo chegado a dormir em cima de barras de esferovite, no Irão. "Tive de me sujeitar ao que havia. Muitas vezes os quartos estavam completamente sujos e eu tinha de tirar o saco-cama para pôr por cima do edredão.".Apesar da solidariedade, foi assaltado num hotel no Nepal, onde as portas dos quartos não fechavam. Já o tinham tentado assaltar antes, na Índia, em andamento. Um indiano de moto tentou por três vezes tirar-lhe a mochila, o GPS e a câmara de filmar sempre presa ao capacete. Ajudou-o outro motociclista, que fez questão de o acompanhar depois durante 40 quilómetros e que no final lhe ofereceu almoço e lhe apresentou a família..Durante a viagem, Pedro Bento conheceu muitas pessoas e paisagens, que ia fotografando e partilhando na sua página da rede social Facebook. Croácia, Montenegro e Turquia foram as suas preferidas..Mas nem todas as paisagens o impressionaram pela positiva, como o cenário com que se deparou na Índia: "Vi pessoas no lixo à procura de algo para comer. As pessoas são zombies que andam ali. Não se percebe qual é o objetivo que têm na vida. Crianças com 2, 3 anos, acordam e a primeira coisa que vão fazer é mexer nos excrementos das vacas para amassá-los, metê-los a secar para depois usarem como combustível nas lareiras", relembra.."Encontramos pessoas deitadas na rua e não se percebe se estão vivas ou mortas. Com 50 graus, estão sentadas no chão a contar pedras." Deixou a Índia com um cansaço acrescido. Não lhe doíam só as pernas, "psicologicamente é muito difícil"..Uma viagem em ritmo de prova.Partiu do quartel de bombeiros de Almeirim, a 13 de abril, seguiu pelo sul de Portugal para Espanha. Passou por França, Itália, Eslovénia, Croácia, Montenegro, Albânia, Bulgária, Turquia, Irão. Neste último país, Pedro Bento apanhou um avião até ao aeroporto de Goa, na Índia, para evitar o Paquistão e o Afeganistão, zonas de conflito. Seguiu depois da Índia para o Nepal até à capital, Katmandu, que fica a 1400 metros de altitude..Como não levava a viagem planeada, para além do trajeto que pretendia fazer, uns dias conseguia atingir grandes distâncias, outros nem tanto. Chegou a pedalar 250 quilómetros num dia, no Irão. Havia que compensar os dias em que fez menos quilómetros do que o suposto, porque tinha um tempo limite: 73 dias. O número pouco redondo era o somatório dos dias de férias de Pedro com um mês que conseguiu de licença sem vencimento no seu trabalho como técnico superior de desporto na Câmara Municipal de Almeirim. Conseguiu alcançar a meta aos 71 dias e regressou a Portugal a 26 de junho.."Isto foi quase em contrarrelógio. Era como se eu tivesse em prova, porque tinha aqueles quilómetros para fazer naqueles dias", diz Pedro Bento..Nem os incidentes o travaram. Para além da tentativa e do assalto, teve várias lesões. Nos primeiros dez dias de viagem "tinha dores insuportáveis". Tomava anti-inflamatórios de quatro em quatro horas, em vez das 12 de intervalo recomendadas, e tinha de parar constantemente para fazer gelo. Também antes de chegar ao Irão deixou de conseguir pedalar - "era como se estivesse a levar facadas na perna" - e deixou de sentir a mão direita..Furou os pneus, a primeira vez ainda não tinha deixado Portugal. E teve de enfrentar chuva e vento, logo em Espanha e França, e temperaturas de 48 graus no Nepal e 51 graus na Índia. Mesmo assim diz que era preferível continuar a pedalar: "É impossível parar na Índia mais do que cinco minutos, porque tinha logo cinco ou seis pessoas a pedirem-me para tirar fotografias, para falar comigo. Eu era como um extraterrestre. Tive inclusive a polícia a mandar-me parar e eu a pensar: não quebrei regras nenhumas, eles [indianos] não têm regras de trânsito. Afinal, queriam tirar uma fotografia e até fomos tomar uma Coca-Cola.".As provas mais difíceis do mundo.As provas duras não são uma novidade para Pedro. Começou a pedalar aos 18 anos, inscreveu-se logo em corridas nacionais e foi ganhando uns troféus "nas provas da sardinha assada", como lhes chama, mas queria mais. "Comecei a ver revistas e reparei numa prova que surgia sempre, a da Costa Rica. Estes desafios têm outro sabor. Viajo, conheço outras culturas e outras pessoas. Enquanto há pessoas que vão para a praia nas férias, eu faço isto. Dá-me gozo. Dá-me prazer sofrer", conta a rir..Nem o acidente que teve em abril de 2017 - em que partiu nove vértebras e a omoplata direita - o parou. Acabou por recuperar "quase totalmente", apesar dos diagnósticos pouco favoráveis que lhe foram sendo feitos. Teve de procurar quatro médicos diferentes até encontrar um que lhe dissesse o que queria ouvir - que ia poder voltar a praticar desporto. E esta viagem foi também a forma que encontrou de agradecer a quem o resgatou nessa altura, os Bombeiros de Almeirim..Aos 40 anos, Pedro ainda tem um objetivo por completar: fazer as dez provas de bicicleta mais duras do mundo. Destas já completou seis, uma na Costa Rica, outra no Canadá, no Chile, em Itália, no Nepal e na Austrália (já depois do acidente) e neste ano ainda quer fazer a prova da Mongólia. "Cada uma tem uma característica que a faz ser considerada uma das provas mais duras do mundo." Austrália é a mais longa em distância, Itália tem o máximo de acumulado, ou seja, 36 mil metros na vertical, e o Nepal tem o já referido ponto mais alto - Thorong La..Sobre a possibilidade de repetir um desafio como a viagem até ao Nepal diz que "gostaria muito, mas teria de fazer tudo mais devagar". "Foi espetacular, porque consegui envolver a comunidade em torno destas causas."