A 12 de setembro de 1995, Luciano Pavarotti (1935-2007) promoveu um concerto de beneficência (da série Pavarotti & Friends), na sua cidade natal, Modena. Objetivo central: a angariação de fundos para as crianças da Bósnia, vítimas da guerra (recorde-se que os acordos de paz só seriam assinados cerca de três meses mais tarde). Acontecimento central nesse evento foi a canção Miss Sarajevo, interpretada pelo tenor italiano na companhia de dois elementos dos U2, Bono e The Edge, e ainda o produtor Brian Eno..A canção transformou-se num verdadeiro fenómeno global, além do mais ilustrando a capacidade de Pavarotti cruzar a arte da ópera com as componentes do pop rock. O certo é que a sua gestação não foi fácil, com Bono a receber sucessivos telefonemas de "intimação" de Pavarotti, "exigindo-lhe" que compusesse algo que pudessem cantar juntos... Mais do que isso, através desses telefonemas, Pavarotti foi estabelecendo uma relação de cumplicidade com a governanta de Bono (também de origem italiana), a ponto de conseguir que ela o fosse pressionando no dia-a-dia no sentido de não se esquecer da canção que tinha "prometido" ao signore Pavarotti....A história está contada pelo próprio Bono no documentário de Ron Howard, intitulado apenas Pavarotti, um exemplo feliz do modo como o cinema pode ser um instrumento de (re)descoberta de uma figura universalmente conhecida e celebrada. Claro que revisitamos o espetacular sucesso dos Três Tenores (Pavarotti com os seus amigos Plácido Domingo e José Carreras), mas tão-só como um capítulo de uma trajetória pessoal e artística que está longe de se reduzir às imagens mais fortes do marketing..Dir-se-ia que Howard relança, aqui, a estratégia que já dera origem ao magnífico The Beatles: Eight Days a Week (2016), dedicado às performances ao vivo dos quatro de Liverpool e, em particular, ao seu impacto nos EUA. Os muitos e fascinantes materiais de arquivo, incluindo documentos da mais pura intimidade familiar, não são acumulados como meras "curiosidades" biográficas. Em boa verdade, trata-se de perguntar qual a identidade de alguém consagrado em palcos de todo o mundo, ao mesmo tempo vivendo uma existência em que o rigor obsessivo da preparação se cruzou sempre com as convulsões do amor e da paixão. Sem esquecer o pormenor do amuleto (um prego dobrado) que sempre acompanhou Pavarotti....Assim se confirma também que passou a haver uma multifacetada área documental que, felizmente, conquistou um lugar seguro nas dinâmicas do mercado cinematográfico: Pavarotti é um filme, afinal, sobre alguém que, através do canto, nunca desistiu de enfrentar os enigmas do seu próprio ser..Outras estreias:.* PÁSSAROS DE VERÃO - Conhecíamos o colombiano Ciro Guerra através do magnífico O Abraço da Serpente, nomeado ao Óscar de melhor filme estrangeiro de 2015. Agora, em colaboração com Cristina Gallego, assina um retrato trágico das guerras do tráfico de drogas, na Colômbia, ao longo das décadas de 1960-1970 - frio, metódico, intransigentemente realista..* OS MORTOS NÃO MORREM - Foi uma das desilusões de Cannes, no passado mês de maio. Jim Jarmusch tenta construir uma parábola política através da história da invasão de uma cidadezinha americana por zombies, mas pouco mais consegue do que uma antologia de momentos anedóticos, nem sempre muito inspirados. Apesar de tudo, alguns atores vão protagonizando algumas situações de desconcertante ironia, com destaque para Iggy Pop, interpretando um zombie viciado em... café!