Paulo Branco virou uma nova década no início do mês mas mantém-se o mais ativo dos produtores independentes e um distribuidor/exibidor entusiasmado com a ideia de dar a conhecer aos espectadores filmes inesperados ou fazer redescobrir obras esquecidas. Branco acaba de reabrir as suas salas de cinema, entre elas, o Nimas, em Lisboa, e aposta tudo numa programação fora da rotina. Por sua vez, a plataforma de streaming Filmin homenageia-o disponibilizando por estes dias uma série de títulos por ele produzidos..Com 70 anos feitos há poucos dias, como é que está a energia e estímulo de um produtor, por esta altura, com mais de duas centenas de filmes no currículo? O estímulo do produtor tem pouco a ver com a idade. Interessa-me tentar ainda encontrar neste meio projetos e pessoas com quem me apeteça trabalhar, que representem um desafio para mim próprio no papel que tenho em fazer existir esses projetos. Sobretudo novas vozes, cineastas que estão a começar. Não quero simplesmente somar produções, mas sim escapar aos ritmos cada vez mais formatados dentro da produção cinematográfica..Os dias de confinamento puseram-no a pensar mais no passado ou no futuro? Eu, felizmente, no contacto que tive com grandes artistas e cineastas ao longo da vida, aprendi uma coisa: não olhar para o passado; olhar sempre para o futuro. É aí que encontramos o prazer. Deleitarmo-nos com o que já fizemos é fecharmo-nos sobre nós próprios e esse, sim, é o envelhecimento mental precoce de que tento fugir. Claro que tenho prazer em por vezes falar das aventuras do passado, mas sempre com a ideia da aprendizagem para o futuro. E o confinamento foi isso mesmo. Foram dois meses e meio que me deram tempo e um espaço de reflexão para inventar novos desafios. Desde logo, havia uma energia latente entre todos nós - a equipa da produtora [Leopardo Filmes], em teletrabalho - que resultou, por exemplo, nas "quarentenas cinéfilas" do site e na passagem dos Mistérios de Lisboa [de Raúl Ruiz] na RTP em horário nobre. Portanto, foi um período extremamente produtivo, e ainda aproveitei para voltar a desfrutar de grandes obras literárias e musicais, que também são uma fonte de ideias e inspiração..A covid-19 foi o primeiro vírus que obrigou à suspensão das salas de cinema. Curiosamente, e para falar de aventuras do passado, o Paulo já teve de lidar com um vírus durante as filmagens de Non ou A Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira, que esteve quase a interromper os trabalhos... O Non foi uma aventura absolutamente extraordinária, a começar pelos meios artesanais de que dispúnhamos para uma produção daquela dimensão, e ainda por cima trabalhando com o Manoel numa fase em que ele era muito exigente. As peripécias davam para uma série de ficção enorme... O que aconteceu foi que, de um dia para o outro, 48 horas antes de rodarmos as cenas complicadíssimas das batalhas, que implicavam a mobilização de muitos cavalos e pessoas, fomos informados da existência de um surto viral de peste equina, e era preciso parar tudo. Ou seja, era obrigatório o confinamento de todos os cavalos para evitar o contágio. E eu, tendo uma equipa de cento e cinquenta pessoas na rodagem e os adereços já todos fabricados, de repente sem os cavalos da GNR e os que viriam de Espanha, treinados para as quedas, tive de mudar de local - passámos de Ferreira do Alentejo para a Barroca d"Alva, onde também se filmou A Herdade [de Tiago Guedes] -, encontrar duzentos cavalos, oitocentos figurantes, e ainda alojamento e refeições para estas pessoas... Como é que fiz isso? Quem viu achou que eu estava completamente fora de mim, que ia ser impossível. Filmámos durante dezassete dias seguidos, sem parar, em que devo ter tido uma média de uma hora de sono diária. Era uma época em que o espírito da produção estava nestas decisões tomadas em cinco segundos. E eu ainda só sei funcionar assim..E quanto ao encerramento temporário das salas de cinema que gere? Com o caso das salas, quando percebemos que a coisa era muito mais grave do que se dava a entender, a paragem foi fácil. Mas o que interessa é agora a reabertura, o tipo de programação que deve ser aplicada. A minha ideia é que não se podia retomar sessões com um sentido rotineiro, era preciso encontrar algo de muito especial que surpreendesse as pessoas. Daí o ciclo japonês "Roman Porno" [a começar dia 18, no Nimas], que é algo que faz falta na paisagem das salas, filmes que escapam aos códigos tradicionais e que têm uma grande força enquanto objetos cinematográficos. No fundo, esta paragem deu-me a noção da necessidade de reinvenção da lógica de programação, para além das estreias normais. Sobretudo as que merecem mais atenção do que lhe é dada à partida..Está otimista neste regresso dos espectadores à sala escura? Quando se tem paixão naquilo que se faz, somos sempre otimistas. Pensamos que os outros nos vão acompanhar. É a mesma coisa quando produzo um filme e acredito nele: eu bato-me pela visibilidade que acho que merece. Dou-lhe o exemplo do Cosmos [de Andrzej Zulawski], que é para mim uma das mais importantes produções que fiz nos últimos anos e que só agora consegui que tivesse o devido reconhecimento em França. Como programador de uma sala, a minha batalha também é essa de chamar a atenção para filmes que não foram apreciados como deve ser na altura da estreia..Vários filmes que produziu vão agora estar disponíveis em streaming na Filmin. Entre esses títulos, A Cidade Branca, do suíço Alain Tanner, corresponde aos seus primeiros anos como produtor, início dos anos 1980. Lisboa foi o motivo deste filme ou houve algo mais espontâneo na raiz do projeto? É necessário viajar até essa altura, quando comecei a atividade de produtor, com o Oxalá [António-Pedro Vasconcelos], o Francisca [Manoel de Oliveira], o Silvestre [João César Monteiro]... e criou-se uma dinâmica, inclusive com a sala que eu tinha em Paris e onde se cruzavam realizadores, que às tantas comecei a lançar desafios. Um deles foi ao Tanner. Queria que ele viesse filmar a Portugal, mas sem nenhuma imposição de ser em Lisboa. Uma semana depois ele disse-me que tinha uma ideia relacionada com o facto de ter sido marinheiro - o ator seria o Bruno Ganz, neste caso, seu alter ego - e talvez isso permitisse a descoberta de Lisboa, sendo uma cidade portuária. Só tinha seis páginas escritas e foi o que bastou... Lá está, tudo se fazia assim. Os filmes nasciam num dia, numa espécie de inconsciência da minha parte. Hoje as equipas são muito conservadoras. As pessoas esquecem-se que A Mãe e a Puta, do Jean Eustache, foi feito com quatro pessoas, e o tão popular e mais tradicional Um Homem e Uma Mulher, do Claude Lelouch, com onze pessoas, contou-me ele. Portanto, a técnica não imperava..Já não é assim? Eu acho que um dos erros das produções de agora é o preciosismo da técnica. Tudo tem de ser muito bonitinho, bem acabado, a fotografia impecável, os décors, etc. Ora a essência dos filmes é outra. Há filmes que produzi que têm imensos "defeitos" técnicos e que são dos mais inventivos. Neste momento é muito difícil contornar esse fator porque a maior parte dos filmes são feitos com financiamentos dos canais de televisão, com determinados padrões técnicos que se não forem cumpridos eles depois recusam-se a passar. Isso também serve de desculpa muitas vezes para que haja um peso na logística dos filmes que não se justifica. E é aí que um produtor tem de ter a coragem de dizer que as coisas se podem fazer de uma maneira diferente. Da minha parte sempre tive uma tendência para subverter as regras do jogo, e um dos meus maiores prazeres é estar por detrás de um bom filme de um grande realizador experiente..Que realizador nomearia assim de repente? O [David] Cronenberg é um daqueles casos de que me orgulho muito, porque o próprio considera o Cosmopolis um dos seus melhores filmes. Foi um projeto atípico. Disse-me que através desta obra acabou tudo o que queria dizer no cinema, e que o outro que fez a seguir [Mapas Para as Estrelas] já não lhe interessava..Também produziu filmes realizados por atores como Michel Piccoli - dele vão ser exibidos dois no Nimas por estes dias - Fanny Ardant ou Mathieu Amalric. Valoriza os atores enquanto "autores" de cinema? Uma das coisas que sempre me espantou é como os atores americanos eram também extraordinários realizadores. Basta dar o exemplo do Paul Newman, já para não falar do John Cassavetes, o Clint Eastwood, ou mesmo o Marlon Brando, que só realizou um filme [Cinco Anos Depois] e é magnífico, o Charles Laughton [A Sombra do Caçador], Ida Lupino, Sylvester Stallone... Enfim, há sempre qualquer coisa de interessante num filme realizado por um ator. E eu encontrei algo de original nos atores que produzi. Os filmes realizados pelo Piccoli são absolutamente irrepetíveis, é um universo muito particular, tal como acontece com a Fanny Ardant. O Mathieu Amalric é um bocadinho diferente; ele é ator por acaso. Começou comigo, como estagiário, chauffeur, depois trabalhou com o César Monteiro, o Peter Handke, mas com uma permanente vontade de realizar. Num certo sentido, ele é mais realizador, apesar de ser um ator espantoso. E o passo que dei com estes atores teve também a ver com um vínculo de amizade..Entre portugueses e estrangeiros, que realizadores o marcaram mais até hoje? Com quem aprendi praticamente tudo foi com o Ruiz, o Oliveira e o César Monteiro.