Tem um espetáculo programado para Ílhavo no domingo, às 16 horas. É o regresso aos concertos depois de dois anos parado com a pandemia? É totalmente o regresso. Desde 25 de outubro de 2019, quando fiz o Grande Auditório do CCB, não tive mais nenhum concerto, em nome próprio ou de outra forma qualquer..É um pequeno concerto? É um concerto no Teatro da Vista Alegre. Promovido pela 23 Milhas, que é uma organização cultural em Ílhavo. E será, enfim, um introito para outros que virão..Ao mesmo tempo está disponível no YouTube o single Minha Mãe, inclusive com uma capa desenhada por Joana Vasconcelos, em cujo ateliê, em Lisboa, estamos a ter esta conversa. Explique-me o porquê este tema e o que é que ele vale para si? Em abono daquilo que é, porque é mesmo, não houve propriamente uma decisão de escolher aquele tema. Aquele tema calhou no meio de tantos. Como os recursos e os meios não são, se calhar, tão evidentes como deveriam ser, poderia só depender da voz. O tema foi gravado inteiramente à capela e depois então acrescentámos o contrabaixo, muito leve, e aquele órgão. Mas quer dizer, não houve propriamente escolher aquele tema..É um tema que se adequa mais a potenciar a sua voz? Sim. Há coisas que acontecem sem eu propriamente racionalizar sobre. Só depois. Como agora. Estou a pensar nisto agora pela primeira vez..Está a pensar no porquê? Exatamente. Estou a pensar porque me perguntou. Aconteceu. É daquelas canções que ficam no imaginário, que se traz agarradas e aconteceu..É um tema de Zeca Afonso. É um tema de José Afonso. Letra e música. Que Adriano também cantou, muito contemporâneo dele e quiçá a mim ficou-me mais a de Adriano Correia de Oliveira do que a do José Afonso..Adriano Correia de Oliveira também lhe é muito querido, tem estudado a obra, e agora até estamos a assinalar os 80 anos do nascimento. Deixe-me só dizer outra coisa que é incrível. Eu dou conta de que neste ano, 2022, faz exatamente 80 anos que nasceu e que são também 40 anos desde que morreu. Mas eu digo-lhe e com tudo aquilo que é, não é mais do que é, eu não sabia. Quando decidi debruçar-me sobre a obra dele não fazia a mínima ideia dos aniversários..Não foi motivado pelas efemérides? Não, não foi consequência de. Não houve qualquer aproveitamento. Era uma coisa que eu queria fazer há muito tempo. Aliás, em 2017 há um concerto, pequeno também, que eu não sabia sequer que tinha sido tão divulgado, só agora é que vi, Tributo a Adriano Correia na Festa do Avante! e depois no Fólio em Óbidos também..Nesse concerto as músicas de Adriano eram dominantes, é isso? Era um concerto exclusivamente sobre o Adriano..E aí não tinha nada que ver com a data... Exatamente. Não era por aí, nem foi agora que fui descobrir Adriano. Ele podia ter nascido há 500 anos e para mim era-me indiferente..Adriano morreu há 40 anos, e o Paulo era pouco mais do que um miúdo então. Como é que explica esta influência? Sempre ouvi toda a música, mas a guitarra portuguesa sempre esteve presente. Sempre. E então é aquelas coisas que vais ouvindo, todos os dias. Sem saberes que a vais ouvir. Tropeças e ficas. E depois eu sou muito de ficar num tema e ficar ali..E depois, de repente volta ao músico e investe. Sempre estive muito familiarizado. Até lhe digo que consigo dizer que Adriano Correia de Oliveira poderia ser dividido da seguinte maneira: há os fados de Coimbra, há as canções populares e há as canções ditas de intervenção. Eu só agora é que estou a pensar nesta divisão. Nunca pensei em tal..Diz que associa mais a Minha Mãe a Adriano do que ao próprio Zeca Afonso? Então se eu lhe perguntasse algo do Adriano de grande força? Que as pessoas devessem ouvir hoje. Essa é difícil. Porque eu não as consigo separar. Mas diria Erguem-se Muros em Volta, que não é letra do Adriano..Está a privilegiar a interpretação. É. E dentro das canções populares há a Morte que Mataste Lira, que acho que nem é preciso dizer nada. É a canção por si..Tendo ele morrido há 40 anos, há uma geração que, claramente, ainda tem memória, há uma geração mais nova, como a sua, que ainda o apanhou e que tem esse gosto, mas acha que o seu envolvimento agora também pode ajudar muita gente a descobrir Adriano? Sim. E se me perguntarem porquê, em primeiro porque gosto muito, também porque faz parte integrante da minha vida. É uma coisa que me acompanhou desde sempre. E segundo é porque não difundir mais? Seja pelo que for, merece ser difundido. Se eu puder acrescentar alguma coisa, tudo bem. Mas é simplesmente celebrar Adriano Correia de Oliveira. Celebrar a sua obra e a sua vida..Neste concerto em Ílhavo o que é que está a pensar cantar? Não só Adriano..Mas Adriano também? Sim. Porque estamos no processo de fazer as coisas. Uma coisa é eu cantar sozinho e cantar à capela e o que me apetecer. Outra coisa é ter de ter músicos. É diferente. Vamos ter com certeza temas de Adriano, mas outros temas que eu revisito sempre, seja do meu reportório ou de pena própria seja aqueles clássicos que todos nós sabemos..Quando as pessoas vão ouvir Paulo Bragança estão sempre a pedir que cante algumas canções que identificam consigo. Sim, sim. Mas sabe que depois há daquelas partidas. O alinhamento nunca é seguido à risca. É conforme aquela altura, e não sei porquê, olha, vai esta. É para trocar as voltas todas. Às vezes até dizem "ah, mas este tema é muito igual ao outro". Igual não será porque senão tinha outro nome. E não teria outra vida própria..Está aqui a falar com muito entusiasmo deste regresso aos palcos. Mas, como dizia, desde outubro de 2019 não teve concertos, com a pandemia a afetar a sua vida como a de muitos outros artistas. Estamos a falar de afetar a nível de rendimentos, certamente, mas até a nível da própria qualidade de vida, da sobrevivência? Sim. Até de uma forma impensável. Há bocado, antes de gravarmos, estávamos a falar sobre, enfim, quando tive de estar na rua, como lhe contei noutra entrevista, mais de vida. Aí foi uma questão diferente, consequência de várias situações. Agora foi diferente com a pandemia. O Natal de 2020 passei-o na rua. Sozinho. E por aí já pode ver. Quer dizer, é extremamente complicado..Teve mãos amigas que o ajudaram nessa altura? Algumas. Algumas. Mas as pessoas não têm obrigação nenhuma. Absolutamente nenhuma. Depois ainda fico pior quando não posso cumprir aquilo que podia cumprir. Estás a pensar que alguma coisa vai acontecer, não acontece e entretanto já fica ali uma perna coxa. A seguir vai outra. Não há estabilidade. A cadeira, por exemplo. Uma cadeira é um exemplo perfeito do que é a ordem nas coisas. A cadeira tem braços, estabilidade, com aquelas quatro patas estar ali e, ainda por cima, oferecer a situação para um conforto, para um coração cansado. Agora assim é impossível..Na tal entrevista anterior, falou muito desse período de andar na rua e de até lutar por um simples pedaço de cartão para poder dormir melhor. Mas desta vez estamos a falar de uma situação que decorre da impossibilidade de trabalhar e que aconteceu a muitos outros músicos também. As autoridades, o governo, esqueceram que pandemia afetava algumas atividades, algumas pessoas, mais do que outras, e que muitos músicos não fazem assim tanto dinheiro com o seu trabalho que possam estar meses, ou anos, sem atuar? Não quero pensar que seja por aí. A questão de os artistas por vezes ganharem bem e não se lembrarem de poupar não se aplica a muita gente. Eu, por exemplo, não me considero perdulário. Agora quanto a se o governo podia ter feito mais a todo o nível nesta pandemia é difícil de dizer, mas que não haveria preparação, não, nem cá nem em lado nenhum. Agora, a partir daqui, tiramos todos uma lição e o governo deve tomar providências para que pessoas nessa situação possam estar mais confortáveis... mas também não são só os artistas. Que dizer? É tudo. Eu penso muito na parte dos técnicos, por exemplo. Deve ser uma parte difícil também. Não há hipótese. Eu ainda poderia cantar, não foi o caso, mas ainda poderia....Uma outra consequência da pandemia é que as pessoas parece que começaram a aceitar mais uma vida à distância. Ou seja, encomendam a comida via Uber, em vez de irem ao cinema veem Netflix. Mas nada substitui o público, estar numa sala a ouvir o músico, não é? Como é que posso dizer? Isso é um exagero, o exagero do exagero por si só. Nada substitui ter um livro nas mãos, por exemplo. E é também muito diferente eu estar a ouvir na televisão ou num streaming qualquer do que estar com o artista a uns metros de distância..E como artista? Também sente essa diferença entre estar com público à frente ou estar a gravar em estúdio? Sim. Absolutamente. Toda a situação de entrar em palco, aquilo é um ritual. Para mim é um ritual. É uma cerimónia. Tem rito. É isso. Sacraliza-se. Daí que seja tão importante, que é o que se passa hoje em dia em tantas coisas, é não haver cerimónia para nada. Mas o próprio ser humano existe para uma cerimónia..Está nervoso com esta ida a Ílhavo, para o reencontro com o público? Estou..Estou a perguntar isto porque não deveria estar. Tem uma carreira de 30 anos. Mas estou. Fico. Nunca é de ânimo leve. Mas estou porque é bastante tempo sem... mas também já estive assim, mas é diferente. É uma questão diferente. Uma pessoa vai cheia de cicatrizes. Vai-se cheio de cicatrizes. Agora depende é se mostras ou não mostras. Mas se calhar não está na minha mão mostrar ou não mostrar. Não posso decidir sobre isso. Nem nunca penso sobre isso..Referiu que antes de chegar a pandemia tinha uma série de concertos programados. Até um na Ucrânia, onde agora há guerra. Sim, havia uma digressão com a Companhia de Teatro de Braga. Havia Pedro e Inês onde eu ia fazer de Pedro no canto III d'Os Lusíadas em Kherson e claro não fomos a lado nenhum. Nem eu nem ninguém. E não sei quando será..A guerra não inspira a sua música, pois não? Nada. Passei por uma em África e bastou. Estou chocado porque acho que é uma infâmia. É uma infâmia absoluta. Mas a infâmia aqui não tem de ser absoluta ou menos absoluta. É infâmia por si só..leonidio.ferreira@dn.pt