Passo a passo. Como o cérebro controla a marcha... e não nos deixa cair
Treino, treino, treino. No cérebro tudo passa por aí. É o treino para aprender a conduzir um automóvel ou andar de trotineta, para aprender a tocar piano, a equilibrar uma bola sobre a cabeça, ou a trepar por uma parede escarpada. E há uma zona específica no cérebro - o cerebelo - que regula e controla essa aprendizagem, e que, a cada novo desafio, responde com novos padrões locomotores. Agora, uma equipa de neurocientistas da Fundação Champalimaud deu mais um passo para a compreensão deste complexo sistema neuronal, e descobriu que o "onde" e o "quando" neste processo "são alcançados de forma diferente dentro do cerebelo", como diz Megan Carey, a investigadora que lidera a equipa que fez a descoberta.
Sim, é no cerebelo que está a chave deste processo, e o que a equipa do Centro Champalimaud conseguiu desvendar foi que "os dois lados do cérebro contribuem de maneira diferente para os componentes espaciais e temporais da aprendizagem [dos novos padrões locomotores] ", como explica, por seu turno, Dana Darmohray, a primeira autora do estudo, que é publicado hoje na revista científica Neuron.
Para chegar aqui, a equipa de Megan Carey no Centro Champalimaud desenvolveu uma engenhosa passadeira com duas faixas independentes para testar em ratinhos a adaptação a uma marcha num "terreno" que exige diferentes velocidades aos membros locomotores dos dois lados do corpo.
Na prática, os investigadores colocaram as duas faixas da passadeira a correr a velocidades diferentes e foram ver, graças a uma técnica de genética molecular, como os circuitos neuronais dos ratinhos reagiam à situação.
Já se sabia antes que nos seres humanos sujeitos a uma experiência semelhante bastam poucos minutos para que a simetria da locomoção seja recuperada, verificando-se uma adaptação rápida às diferentes velocidades impostas a cada uma das pernas. E nos ratinhos, como seria?
Para espanto dos investigadores, o processo não é muito diferente. "Ficámos surpreendidos com as notáveis semelhanças entre a aprendizagem locomotora humana e a dos ratinhos", comenta Megan Carey.
A explicação até acaba por ser simples: tal como nos humanos, também nos ratinhos esta aprendizagem depende do cerebelo, uma região do cérebro localizada na sua base, que controla a coordenação e as várias formas de aprendizagem motora. Além disso, tanto a aprendizagem humana como a dos ratinhos tem dois componentes distintos que se adaptam a ritmos diferentes: o espaço e o tempo.
Como diz, com algum humor, a coordenadora do estudo, "quando andamos, especialmente numa calçada portuguesa, temos de colocar os pés no lugar certo, no momento certo. Qualquer um destes componentes não chega por si só".
Usando a passadeira especial, a tal ferramenta de genética molecular para seguir os circuitos neuronais em direto e ainda um algoritmo de visão por computador que a mesma equipa já tinha desenvolvido anteriormente para poder monitorizar os movimentos das patas, do nariz e da cauda dos ratinhos durante a experiência, os investigares acabaram então por deslindar um pouco mais do processo.
Concluíram assim que o controle dos dois parâmetros, o onde e o quando, é diferenciado no cerebelo. "Descobrimos que a aprendizagem espacial é prejudicada quando manipulamos a atividade neural em ambos os lados do cerebelo", e que, "pelo contrário, a aprendizagem temporal só é afetada quando a atividade neural é manipulada do lado mais rápido da passadeira", especifica Dana Darmohray.
No caso dos ratinhos, a equipa verificou que "enquanto os quatro membros contribuem para a aprendizagem espacial, a pata dianteira mais rápida deu uma contribuição única para a aprendizagem no tempo", e tudo isto em conjunto aponta para que "as aprendizagens de onde e quando colocar os pés são processadas separadamente no cérebro", sublinha a coordenadora do estudo.
No futuro, os investigadores esperam que as suas descobertas possam ter também aplicações em novas terapias para pessoas com problemas de locomoção e coordenação motora, decorrentes, por exemplo, de AVC (acidentes vasculares cerebrais).
Este tipo de passadeira já é utilizada como terapia de reabilitação em pessoas com padrões de marcha assimétricos, como os doentes que sofreram um AVC. E Megan Carey acredita que a descoberta "abre a excitante possibilidade de usar ferramentas genéticas para estudos como o cérebro aprende, no contexto do comportamento que é natural para ambas as espécies, e já é usado como uma terapia de reabilitação em pacientes humanos. Dadas as muitas semelhanças entre a aprendizagem dos ratinhos e a dos seres humanos esperamos, talvez um dia, que as pistas descobertas com este sistema possam ser utilizadas para desenvolver novas abordagens terapêuticas para as pessoas", conclui Megan Carey
Planos para o futuro? "A seguir, queremos descobrir como o cérebro separa os sinais sensoriais dos motores para calibrar o movimento no espaço e no tempo".