Quando há 20 anos chegou ao Parlamento Europeu (PE), Ilda Figueiredo era uma das cinco portuguesas que iriam sentar-se num hemiciclo com centenas e centenas de homens. Nada que assustasse a eurodeputada da CDU, a única cabeça-de-lista mulher em 1999, que, à escala nacional, já estava habituada a estas disparidades. "Em 1979 a presença feminina na Assembleia da República também era diminuta.".Desde que chegou até que saiu do PE, Ilda Figueiredo fez questão - "por princípio" - de pertencer à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. Ainda se lembra de um episódio que protagonizou na Câmara Municipal de Gaia, onde acumulava o cargo de vereadora, no início dos anos 2000, e propôs que os prémios atribuídos às mulheres atletas passassem a ser iguais aos dos homens. Os vereadores do PS, PSD e CDS, todos homens, abstiveram-se. "Não tiveram coragem de votar contra, mas também não tiveram coragem de votar a favor.".O resultado foi que a proposta passou e Ilda Figueiredo transportou o assunto para aquela Europa que ainda parecia mais distante aos olhos dos portugueses. "Levei o problema para lá e foi muito badalado, o desporto era uma das áreas em que queríamos que fosse estabelecida igualdade, incluindo os prémios atribuídos.".Foi também o ano em que Mário Soares, três anos depois de sair de Belém, concorreu ao Parlamento Europeu e protagonizou um dos episódios mais machistas da política internacional: queria ser presidente do PE, mas perante a concorrência da francesa Nicole Fontaine afirmou que esta tinha um discurso de "dona de casa". Foi há 20 anos, ainda não havia movimentos #MeToo ou #Time's Up mas caiu o Carmo e a Trindade. E o ex-presidente da República foi preterido em relação à "dona de casa", mas cumpriu os cinco anos de mandato..20 anos depois: de Ilda a Marisa, uma única cabeça-de-lista.Em Portugal, tal como em 1999, para as europeias do próximo domingo só há uma voz feminina a encabeçar as listas que vão a sufrágio: Marisa Matias, eurodeputada do Bloco de Esquerda há dez anos.."O Parlamento Europeu é o retrato do que é a sociedade. Teve duas mulheres presidentes desde a sua fundação: Simone Weil e Nicole Fointaine", afirma Marisa Matias. E acrescenta: "Em 17, sou a única cabeça-de-lista, os candidatos multiplicam-se, as mulheres é que não."."Parece que não mudou muita coisa... Porque a questão da paridade não se muda só com leis, é uma aprendizagem longa e é preciso alterar mentalidades. Não bastam as quotas. Exige uma educação e cultura viradas para a igualdade e isso faz-se não só nas escolas mas também na sociedade em geral, na comunicação social, nos programas diversos dos governos", diz, por seu turno, a antiga eurodeputada comunista..Passaram 20 anos desde a primeira eleição de Ilda Figueiredo e a representação feminina nas instituições europeias melhorou bastante... mas não chega. Continua aquém do desejado: dos 751 lugares do Parlamento Europeu, 37% dos eleitos em 2014 eram mulheres (a percentagem desceu para 36,2% com as alterações durante o mandato)..O Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE, na sigla em inglês) recomenda que a representação das mulheres e dos homens não deve ser abaixo dos 40%, mas nas europeias de 2014 só 11 dos 28 Estados membros alcançou este equilíbrio - em abril do ano passado, o número já tinha sido reduzido para sete países. Portugal elegeu em 2009 e em 2014 oito mulheres (36,3% e 38%, respetivamente) e é provável que no domingo, dia 26, este cenário não se altere muito..parlamento_europeu_tabela Infogram.A descriminação e o comprometimento com a agenda.A situação preocupa as próprias instituições europeias que têm desenvolvido uma série de estudos a alertar para a importância da paridade. O último foi publicado em fevereiro e fazia um conjunto de recomendações aos partidos, aos Estados membros e à própria União Europeia para que fossem tomadas medidas para minorar a situação, se fosse possível, ainda nestas eleições europeias - 50% de mulheres nas listas era uma dessas sugestões..Porque também quando se fala em possíveis candidatos à presidência da Comissão Europeia, surgem seis nomes, só dois de mulheres: Margrethe Vestager (Dinamarca) e Ska Keller (Alemanha). Os rostos masculinos são Manfred Weber (Alemanha), Frans Timmermans (Países Baixos), Jan Zahradil (República Checa) e Nico Cué (Bélgica)..O estudo "Mulheres nas decisões políticas tendo em vista as próximas eleições europeias", em tradução livre - desenvolvido pelo Departamento para os Direitos dos Cidadãos e Assuntos Constitucionais do PE -, refere que, apesar de esse ser um objetivo da União europeia, "as mulheres continuam gravemente sub-representadas nas instituições democráticas". Mas faz uma advertência: presença igual não é sinónimo de poder igual, ou seja, igualdade na esfera política nem sempre é condição suficiente para a democracia paritária..Em primeiro lugar porque "nem todas as mulheres estão comprometidas com a agenda da igualdade de género" e em segundo porque depois de eleitas, nem todas têm capacidade para fazer valer os interesses das mulheres.."A discriminação é transversal e sente-se na política, às vezes exprime-se de formas elaboradas, até simpáticas." Mas não foi simpatia que Ilda Figueiredo sentiu quando deu voz a uma petição internacional sobre a descriminalização do aborto em Portugal e ouviu um deputado polaco dizer-lhe que as mulheres não tinham os mesmos direitos do que os homens - a petição não foi a votação. Ou quando tinha dificuldades em fazer passar relatórios da Comissão para a Igualdade de Género e que em plenário sofriam "profundas alterações". Ou mesmo quando viu dois desses relatórios sobre questões dos direitos humanos e das mulheres serem rejeitados pelo PE..Desde que foi criado em 1979, é inegável que a participação feminina no Parlamento Europeu aumentou - era então de 16% e passou para 37 % - mas "o progresso é feito a um ritmo inaceitavelmente lento". "Foram necessárias duas décadas para que a proporção de mulheres crescesse de pouco menos de um terço em 1999 para pouco mais de um terço nos dias de hoje.".Portugal acompanhou este ritmo lento de crescimento da participação feminina em Estrasburgo e também estagnou nos oito lugares num total de 21 eleitos - dificilmente este número crescerá depois deste domingo, já que o número se mantém desde que foi aprovada a Lei da Paridade de 2006, que já estabelecia a obrigatoriedade de as listas terem um terço de mulheres..Em 1987, quando foi a votos para as europeias pela primeira vez, Portugal elegeu uma única voz feminina: a da ex-primeira-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo. Dois anos depois, seriam três mulheres e em 1994 cairia para duas. Em 1999 foram cinco e mais uma em 2004..Quotas sim, mas não chegam.As quotas podem ser uma forma eficaz de alcançar e manter o equilíbrio de género - e a União Europeia sabe disso, mas afirma no estudo citado que não são eficazes só por si. Estão dependentes de outros fatores como, por exemplo, garantir que as mulheres são colocadas em posições vitoriosas..Isso mesmo pensa Marisa Matias, para quem não basta existir leis - é preciso pôr as mulheres em lugar de destaque, de maneira a que possam ser eleitas. E afirma, com orgulho, que a Esquerda Unitária, família política a que pertence o Bloco de Esquerda, é completamente paritário - "os partidos de esquerda levam a questão da paridade mais a sério"..A deputada democrata-cristã Ana Rita Bessa, tal como a presidente do seu partido e mais dois deputados, desalinhou da bancada do CDS na aprovação da Lei da Paridade que nas próximas legislativas de 6 de outubro já deverá estar em vigor. Na sua opinião, as quotas podem não ser a melhor solução, mas são um mal necessário para abrir caminho para que, no futuro, as mulheres já surjam em maior número como cabeças-de-lista.."Durante algum tempo achei que as mulheres integrariam as listas por mérito, mas cheguei à conclusão de que se não houver quotas não se gera nos partidos o fluxo de mulheres disponíveis e capacitadas para assumirem as lideranças e virem a ser cabeças-de-lista", afirma a deputada..Parlamento_JP Infogram.O estudo "Mulheres nas decisões políticas tendo em vista as próximas eleições europeias" considera, por outro lado, que no caso de incumprimento de quotas estabelecidas pela via legal, não deve haver lugar a sanções e a perdas de subvenções estatais..O mais eficaz, conforme demonstra a evidência internacional, é que as listas sejam rejeitadas pelas autoridades nacionais se não cumprirem as respetivas leis - este preceito está, aliás, contemplado na nova Lei da Paridade, prevendo a rejeição de toda a lista se não forem cumpridos os requisitos de uma representação mínima de 40% de cada um dos sexos ou de não poderem ser colocados mais de dois candidatos do mesmo sexo consecutivamente na lista.."Restringir o acesso dos partidos ao financiamento ou impor sanções financeiras pelo não cumprimento das metas de género pode ser uma medida ineficaz, particularmente porque os maiores partidos podem preferir pagar a multa ou renunciar ao financiamento, em vez de trabalhar para promover a igualdade de género", diz o documento..Apoiar campanhas e treinar mulheres para a política.Ana Rita Bessa entende, contudo, que um cabeça-de-lista tem de possuir um conjunto de características inatas, que, treinadas, lhe tragam "arrojo e capacidade de mobilização"..E é igualmente de uma necessidade de treino, e até da criação de fundos com vista a apoiar as campanhas eleitorais femininas, que fala a investigação do Parlamento Europeu. No estudo foram avaliados três Estados membros distintos - Espanha, Polónia e Suécia - e, neste caso particular, em todos eles, os entrevistados revelaram forte concordância no sentido de serem criados fundos com vista a apoiar as campanhas eleitorais femininas e o desenvolvimento das carreiras políticas das mulheres..Isto porque, concluiu o documento, as mulheres devem receber formação política - e isso passa sobretudo pela necessidade de engajamento com os media para chegar aos eleitores, pela defesa contra a ciberviolência, aprender retórica para falar em público, debater, negociar táticas, orçamentar e preparar reuniões..A análise da situação permitiu concluir que na Espanha e na Polónia há poucas oportunidades para que as mulheres menos experientes sejam orientadas por políticos mais treinados e tenham acesso a formação específica..A importância dos partidos políticos.O estudo europeu concluiu que os partidos políticos têm uma forte influência no equilíbrio entre ambos os sexos que se pode alcançar na constituição de uma lista - é o caso sobretudo dos sistemas fechados, em que o partido coloca o candidato em determinado lugar da lista, fazendo depender daí a sua elegibilidade. Mas também nos sistemas mais abertos, em que os eleitores podem expressar a preferência pelos candidatos, nota-se que a escolha de mulheres é preterida - questões culturais e sociais, sexismo, a falta de equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, bem como fatores económicos têm um forte peso..O remédio - alerta o estudo - não passa pela adoção de medidas isoladas. E até para aqueles países com melhor representação paritária se recomenda que sejam tomadas medidas adicionais para que um maior leque de mulheres tenha a possibilidade de seguir a carreira política..Assim sendo, o relatório conclui que os partidos devem "implementar programas ambiciosos, multifacetados e coordenados de ação que visem alterar o statu quo das suas práticas internas, bem como a capacitação das mulheres" para a vida política..(Des)equilíbrio entre a política e a maternidade.A União Europeia recomenda, pois, aos partidos políticos que implementem quotas de 50% nas listas, e que haja financiamento destinado a mulheres candidatas. Além disso, é preciso garantir que os partidos lhes mostrem possibilidades de progressão..Muito importante é também garantir que as práticas de trabalho interno "sejam respeitosas para com as mulheres e apoiem o equilíbrio entre a vida profissional e familiar". Uma situação que já acontece no CDS, conforme faz questão de recordar a deputada Ana Rita Bessa: "No CDS, desde que Assunção Cristas é líder, deixou de haver reuniões à hora do jantar, para benefício de todos. Pode haver depois, mas não à hora do jantar." Cristas tem quatro filhos e não abdica de estar presente na refeição em que todos se podem juntar..Ilda Figueiredo também conheceu as dificuldades de ter três filhos pequenos e vir do norte para Lisboa, para ser deputada à Assembleia da República. Quando foi para Estrasburgo já eram adultos e esse problema não se colocou. Mas entende bem o que a questão geográfica pesa nesta decisão. "A mulher considera-se olhada de lado, porque deixa os filhos, a família, e a sociedade acha que os está a pôr em segundo plano. Sei o que significa lidar com esse preconceito.".A luta contra esse estigma, sublinha, dura anos. "É importantíssimo aprovar políticas públicas de alteração de mentalidades e a construção de equipamentos que apoiem e facilitem a vida das mulheres, garantir a sua independência económica com empregos e salários dignos e que permitam que tenham acesso ao direito fundamental que é a igualdade.".Marisa Matias também considera que, mais do que as quotas, é preciso criar políticas públicas que permitam a organização da vida familiar e profissional, já que a mulher acaba por ser sempre "mais carregada"..E se tivesse filhos, mantinha esta empreitada europeia? A resposta não é direta, e claro que assume que seria mais difícil, já aqui é difícil por falta de políticas que garantam o equilíbrio entre a vida familiar e profissional.."Tenho colegas que têm filhos. Sabemos que há mulheres que são forçadas a emigrar e têm de deixar os filhos, as pessoas adaptam-se. No Parlamento Europeu não há sequer direito a licença de maternidade. Nas primeiras semanas, não ir ao plenário ou comissões, significa levar falta. Durante a amamentação há deputadas que levam os bebés para o plenário", diz..A falta de apoios à maternidade às eurodeputadas de que Marisa Matias fala afetaram neste último mandato duas portuguesas: Inês Zuber (PCP) renunciou depois de ter sido mãe - o lugar foi ocupado por João Pimenta Lopes, já que não são permitidas substituições temporárias; Cláudia Aguiar (PSD) optou por faltar aos plenários nos primeiros quatro meses depois do parto. A social-democrata ainda teve direito a um puxão de orelhas do presidente do PE que lhe escreveu a questionar a razão da sua ausência constante nos plenários..A imagem da eurodeputada Licia Rozulli, do partido Forza Italia, a votar com a filha de sete semanas ao colo (no topo desta página), tornou-se icónica na chamada de atenção para os problemas das mulheres trabalhadoras - sejam elas políticas ou empregadas de limpeza. Outras visitas ao plenário sucederam-se, com Vittoria a levantar também o braço sempre que a mãe votava.