"Parece que nunca fomos cruzados, inquisidores, colonialistas, traficantes de escravos"
Só ao cabo de trinta livros é que o escritor João de Melo investe totalmente numa questão muito polémica da nossa história como foi a da ação terrorista da Frente de Libertação dos Açores. Pelo meio revisita a guerra colonial, a questão dos 'retornados' e a deriva esquerdista e populista do Verão Quente, que se segue à Revolução de Abril de 1974. É um romance de uma grande violência emocional - e racional - para quem assistiu a esses tempos e o leitor, ao ser confrontado com a narrativa de Livro de Vozes e Sombras, sai desfeito e com vontade de rever a sua opinião sobre essa época e parte da sua vida.
Demorar tanto tempo até chegar a este romance tem uma explicação por parte de João de Melo: "Cada um escreve de acordo com o seu ritmo interior." No entanto, esta não é a única justificação: "Este Livro de Vozes e Sombras também tem uma história: resulta de dois outros que jaziam no meu computador, esboçados e em conflito um com o outro, desde finais dos anos 1990. Um sobre a FLA, outro sobre a descolonização. Em 2001, quando fui para Espanha como diplomata, perdi de novo a motivação interior para os escrever. Um tanto porque quis viver a cem por cento a experiência cultural espanhola, e outro tanto porque me foram acudindo outros livros - contos, uma novela e o romance O Mar de Madrid, que creio ser a nossa única ficção ibérica."
Mais tarde, João de Melo fez uma descoberta: "A de que aqueles dois 'livros' se pautavam por uma estranha sintonia, não apenas de escrita, mas de âmbito, voz e assunção de responsabilidade para com o meu tempo português. O meu trabalho consistiu em reescrever tudo, cerzir os diversos tecidos da narrativa numa estrutura romanesca que me parece original em mim."
Quando se lhe pergunta se esteve consciente desde o início da escrita que a grande maioria dos leitores pode considerar este romance uma ficção em vez de ser fruto da realidade, João de Melo considera que "os leitores saberão que também escreveram este livro comigo". Mesmo que lhe tenha sido difícil "lidar com os excessos de informação e com as várias histórias deste livro, tive de fazer fugas para a frente, através de hiatos e elipses que deixassem ao leitor a capacidade de imaginar e de preencher os espaços em branco da narrativa".
E se os Açores se tivessem tornado independentes como pretendia a FLA? "Uma luta pela independência só poderia ter algum sentido contra a ditadura e o fascismo salazarista; e contra a pobreza, o isolamento, o atraso sistémico de quase tudo em relação ao continente. Os próprios separatistas não acreditavam na viabilidade dos Açores como país independente", responde. Sem esquecer um facto fundamental na história do arquipélago: "Somos 245 mil residentes nas ilhas, e mais de 700 mil estão fora, emigrados para sempre, pois não pensam regressar."
Colocou tudo o que sabe sobre a Frente de Libertação dos Açores (FLA) neste romance ou ainda não passou o tempo suficiente?
Começo pelo princípio. Este não é um livro "histórico" sobre a Frente de Libertação dos Açores, nem sobre a descolonização e o retorno dos portugueses de África, nem sobre a chamada Revolução dos Cravos. Se fosse possível representá-lo graficamente, diria que era uma estrela de três vértices, numa narrativa triangular, sobre um tempo que se foi acomodando no passado de uma geração portuguesa que não soube endossá-lo às gerações seguintes. Uma história factual da FLA exigiria de mim outra disciplina de linguagem, que se baseasse no rigor da investigação. Apesar do muito que o livro descreve sobre a FLA, é sempre o ficcionista que escreve, não o historiador, pois é de literatura que falamos. E se passou já o tempo suficiente? Claro que sim. Daí eu estranhar que o meu seja o primeiro romance a trazer de volta os temas e memórias desse tempo.
Este romance é um ajuste de contas pessoal com a história ou encontrou nele um bom tema para a ficção?
Nós, portugueses, vivemos mal com a nossa história. Preferimos a epopeia dos grandes feitos, e pouco ou nada as nossas tragédias. Somos todos heróis da batalha de Aljubarrota contra os castelhanos; mas não nos perdemos nem fomos vencidos em Alcácer Quibir. E parece que nunca fomos cruzados, inquisidores, colonialistas, traficantes de escravos. Sofremos os males crónicos de um subdesenvolvimento económico e educativo que nada teve a ver com a posse de um falso império nem com a condição europeia. É aí que se insere esta ficção.
A personagem que vai "extorquir" os segredos do "PREC" açoriano é uma jornalista. Escolhe esta profissão para se vingar de os jornalistas nunca terem investigado profundamente o assunto?
Nunca esteve na minha intenção. O trabalho da jornalista Cláudia Lourenço numa investigação dita "histórica", quando vai aos Açores entrevistar um ex-operacional fictício da FLA, é talvez o passo mais seguro desta ficção. Como se eu próprio fosse na sombra dela, visto que também gravei depoimentos de alguns ativos da FLA. Nos anos 1990, como é sugerido ao longo do livro. Ninguém se reconhecerá na figura de Mariano Franco, o homem de ação do separatismo. Fiz questão de preservar, desse modo, as figuras e os depoimentos daqueles que aceitaram confiar-me a sua relação sigilosa com o independentismo. Estou de consciência tranquila. Quanto à jornalista, alinho pelo mesmo diapasão. Cláudia, sendo ainda tão jovem, é de uma coragem superior à de todos. Creio homenagear nela a audácia e a dignidade do jornalismo.
Até que ponto essa luta independentista foi conhecida no continente ou ficou muito confinada à região?
Houve um tempo em que não se falava de outra coisa, aqui no continente. Vivia-se no alvoroço dos atos de guerra do movimento independentista. Havia medo, falava-se de confrontos e de atentados, sedes de partidos incendiadas, manifestações e paredes escritas com os vivas à FLA e exigências de expulsão dos continentais e dos açorianos da esquerda política. Eu vivi os eventos à distância, pois já residia em Lisboa. E fui desmobilizado da tropa apenas um mês antes do 25 de Abril - pelo que também não vivi por dentro a experiência do fim da guerra, nem o retorno de África dos portugueses, nem as independências e as guerras civis. Mas tal não obstou a que me habilitasse a escrever sobre tudo isso. Tenho uma vivência açoriana, familiar, e uma outra africana, a da guerra em Angola. Foi na capital que vivi o melhor e o pior de todas as fases da Revolução. Isso representou um desassossego, uma pulsão literária, uma espécie de dívida de mim para comigo, enquanto escritor.
Esta luta está esquecida ou ainda existem aspirações independentistas?
A FLA de antigamente é uma, a de agora parece-me diferente. A primeira provocou uma enorme instabilidade pública e tentou, por todos os meios, sabotar e travar o Processo Revolucionário de Lisboa; a FLA de agora reergueu-se das cinzas da anterior, dentro do jogo político e como contestação à autonomia. A democracia constitucional venceu o jogo dos conflitos insulares ao consagrar Açores e Madeira como Regiões Autónomas. Não há gente tão patrioticamente portuguesa como os açorianos de hoje.
Qual foi o papel dos EUA neste conflito?
Numa primeira fase, a América potenciou ao máximo o seu interesse pelos Açores. Na sombra, claro. Os blocos políticos moviam-se em volta. O leste em Lisboa, por entre as teias do PREC, o ocidente na oposição interna e no interesse estratégico-militar dos Açores. A FLA ligou-se politicamente à "terra prometida" dos Estados Unidos. Os seus dirigentes frequentaram as comunidades açorianas aí emigradas, andaram pelos departamentos do Estado americano, proclamaram um "Governo Açoriano no Exílio". Até que o embaixador Frank Carlucci, que dizem ter sido um homem da CIA, persuadiu Henry Kissinger de que a democracia estava adquirida, ou em vias disso, em todo o país. Com Mário Soares como garantia.
A libertação dos Açores era mais do que uma aspiração contra as hordas de esquerdistas pós-revolução?
No livro, percebe-se que os principais agitadores da ideia independentista eram gente de posses: os ricos que temiam a nacionalização dos seus bens; os da má-consciência do antigo regime, que pugnaram pela continuidade da estrutura social nos Açores. Não há como dizê-lo de outro modo: a ordem da FLA era de compromisso com a ditadura e de recusa total tanto ao comunismo soviético como à democratização do país. Exemplo disso: José de Almeida, o presidente da FLA, era deputado da Assembleia Nacional à data do golpe de Estado, eleito nas listas da Acção Nacional Popular, do Marcelismo. Não era deputado pela sua terra, e sim por um círculo do norte do país - creio que Viana do Castelo. Falei com ele em Ponta Delgada durante horas: um homem limpo, de boa figura e sorriso expressivo. Quase me custava a crer no seu lado sóbrio de independentista. A FLA de que falamos perseguia militantes políticos de esquerda e continentais ali residentes. Ameaçava, agredia, difamava, promovia expulsões ou levava os próprios a terem de fugir para Lisboa. Também entrevistei alguns deles.
Antes de passar à ação, o protagonista vai a Lisboa ver o desvario do Verão Quente. Precisava deste passaporte para a sua ação nos Açores?
Mariano Franco, ex-operacional, era um homem prático. Ofereceu-se ao exército antes da idade da mobilização, especializou-se em minas e armadilhas e foi mandado para a guerra da Guiné. Tudo muito estranho num herdeiro rico, filho único de gente poderosa que em regra livrava os filhos de irem para as guerras de África. E casado com uma continental, o que de algum modo comprometia a sua causa açoriana. O pensamento político dele? Um colonial-fascista. Tinha de Portugal a ideia teórica do país multirracial e multicontinental; messiânico, defensor de primeira linha da civilização ocidental. Um homem destes não sabe nem compreende o que então se passa em Lisboa. E lá vai ele, de avião, ver para crer. Ponho-o a andar por Lisboa, à descoberta dos slogans e dos escritos revolucionários; e meto-o, anonimamente, no meio de uma das maiores manifestações a que assisti na Almirante Reis - a da unicidade sindical. Foi o seu batismo político. Isso determina o seu lado da barricada, logo que regressa à ilha.
Porque não saiu vencedora esta cruzada pela independência?
Os factos explicam-no. Desde logo, a instituição da democracia parlamentar entre nós e a criação de um modelo de autonomia política nos dois arquipélagos. É o regime autonómico que leva os elementos da FLA à deserção. Uns triunfam por via eleitoral, alcançando o poder local ou um lugar de deputado no parlamento. Nessa altura, já não são separatistas, e sim "democratas". Outros tinham sido presos e julgados; e os restantes evadiram-se das ilhas para o Canadá e a América. Já por aí se vê até onde ia a cruzada independentista.
Alguma vez imaginou os Açores independentes?
Nunca. À uma porque nunca considerei os Açores uma colónia, no sentido político que atribuímos a Cabo Verde e a S. Tomé e Príncipe. Por outro lado, uma luta pela independência só poderia ter algum sentido contra a ditadura e o fascismo salazarista; e contra a pobreza, o isolamento, o atraso sistémico de quase tudo em relação ao continente. Os próprios separatistas não acreditavam na viabilidade dos Açores como país independente. Somos 245 mil residentes no arquipélago, e mais de 700 mil estão fora, emigrados para sempre, pois não pensam regressar. Ao longo de décadas, a emigração converteu-se num despovoamento das ilhas. Até a paisagem física mudou, com o abandono da agricultura e a conversão dos campos em pastagem. Nos Açores de hoje, há mais vacas do que pessoas. A sua economia é meramente de subsistência e de importação. Os fundamentalistas políticos da FLA fiavam-se na soberania sobre o mar como recurso, e na situação geoestratégica como possibilidade de negócio futuro com as grandes potências.
Descreve o independentista como um ex-combatente da guerra colonial. Esta vivência era fundamental para que ele desejasse reescrever a própria vida com uma luta igual à dos que combateu - independentista?
Ele age em causa própria e em defesa do seu património insular. As suas proezas na Guiné são penas de pavão que se abrem perante os olhos da jornalista que o entrevista, tentando impressioná-la em termos pessoais. Mariano, aos olhos dessa jovem, é tanto ele como o seu contrário. Belo e feroz. Secreto e evidente. Qualquer coisa nele que não bate certo: um mistério por desvendar, um instinto violento e, no lado oposto, uma doçura de trato própria só dos cavalheiros e dos sedutores.
A questão ultramarina surge como um paralelo a meio deste livro e é pródigo nas críticas ao papel do exército português na rápida descolonização. Aqui, a ficção une-se à sua opinião?
Apetece-me recorrer a uma verdade à La Palice: "O pior da guerra colonial foi o facto de ela ter acontecido." Não ter sido evitada, apesar de essa possibilidade ter sido oferecida ao Salazar pelos dirigentes dos Movimentos Africanos de Libertação. O regime agigantou-se no ridículo da "defesa da civilização ocidental em África". Uma espécie de delírio imperial, nosso. No meu tempo, no quartel de Calambata, havia afixado nas paredes um mapa da Europa submerso pelas chamadas "províncias ultramarinas". Angola cobria a Espanha e metade da França; Moçambique e a Guiné submergiam a Alemanha e o Benelux, e por aí adiante. Legenda: "PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO." Éramos o último país do mundo que possuía "províncias" muito maiores do que o território europeu - à maneira do império romano. Na volta do império, o nosso atraso estrutural, o analfabetismo, a pobreza e outras tristezas que ainda hoje nos envergonham perante o continente a que sempre pertencemos, a Europa.
Coloca uma cega entre o vazio e o princípio da sua segunda existência em Lisboa após ter sido obrigada a fugir de África. A questão dos "retornados" é uma das piores páginas do pós-25 de Abril?
Foi uma enorme tragédia para todos. Mas dela resultou não apenas da libertação das colónias de África (a questão de Timor veio depois), mas sobretudo a solução política de uma guerra que, em termos militares, não conhecia vencedores nem vencidos. Faltava escrever sobre isso. A guerra de Angola caiu-me em cima: escrevi-a no meu romance Autópsia de Um Mar de Ruínas, mas ainda não me curei dela.
Sente-se nesta narrativa um grande ressentimento, com décadas ou séculos, por parte da população açoriana em relação ao governo de Lisboa. Faz parte do passado ou mantém-se?
Os açorianos de hoje elegem os seus interlocutores e representantes políticos. Os canais reivindicativos permanecem abertos, mas por outras vias. Tudo foi feito, tudo está novamente por fazer. Temos o desemprego, o abandono escolar, a pobreza e a violência de género, por exemplo, que não condizem nada com a bondade natural nem com a coragem aventureira do povo açoriano. O meu povo. Em luta contra os sucessivos isolamentos: internos e periféricos. Da mesma forma que a beleza extraordinária das ilhas parece ofuscar as carências e os sofrimentos da população insular, no seu meio.
Além do que já conhecia desta época foi necessária alguma investigação específica?
Claro que sim. Guardo documentos, jornais, vídeos e gravações das entrevistas que fiz. O ponto de partida da ficção é, necessariamente, o saber e o conhecimento elementar do real na sua passagem para a imaginação. O meu livro contém uma advertência inicial: não se trata de um romance histórico, mas de uma ficção alternativa à realidade pessoal e verdadeira. E também não é um livro estritamente "açoriano". Preferia chamar-lhe o romance permanente de todos nós. Limitei-me a imaginá-lo, de modo a que fosse único para quem o venha a ler. O debate virá depois.
"Há coisa que só podem ser ditas com literatura", diz o independentista à jornalista. É autobiográfico?
Essa frase é dita por Ângela, a cega de África, no diálogo em Lisboa com a jornalista Cláudia. Aí está uma personagem que só pode padecer de inexistência real. Isto é, só a literatura comporta a criação de uma figura ao mesmo tempo cega, sábia e visionária. Considero, aliás, a parte designada por "Uma Cortina sobre África" o texto mais forte e o mais literário de todo o livro.
Livro de Vozes e Sombras, de João de Melo, editado pela D. Quixote. Nas livrarias terça-feira.