Para quem fala Marcelo quando pede estabilidade?
O Presidente da República guardou a frase, curta e grossa, para o final do discurso: "Vivemos no início da legislatura um tempo que não pode ter o sabor de fim de legislatura." Uma "ideia merecedora de reflexão mais alargada", como ele próprio classificou o discurso de quinta-feira à noite na conferência "Portugal.. e agora?", que assinalou os 30 anos do jornal Público; uma ideia proferida quando falta um mês para deixar de estar inibido de dissolver a Assembleia da República, passados os seis meses constitucionais sobre a posse do governo; e uma ideia que, por sua vontade, afasta ao mesmo tempo esse cenário - Marcelo Rebelo de Sousa apelou à estabilidade e pediu que se refaçam laços, aproximações, e se criem consensos mínimos em nome do interesse de Portugal.
"A frase do Presidente quer dizer isso mesmo, que nem o governo pode ameaçar ir-se embora mesmo que haja coligações negativas. É um aviso a estas duas atitudes que são rotineiras no Parlamento e no sistema português. Houve derrubes de governos com coligações negativas e houve o governo [na anterior legislatura] a ameaçar demitir-se na crise dos professores", sintetiza o investigador de ciência política, Adelino Maltez, lembrando o novo quadro parlamentar em que o PS tem uma maioria relativa e não há acordos escritos como existiam na anterior legislatura, a geringonça formada pelo PS, BE e PCP)
Foram várias as frases ditas em tom presidencial sobre a estabilidade e o afastamento de um cenário de eleições antecipadas. "Não se julgue que alguém de meridiano bom senso possa recorrer num intervalo de tempo em que isso será possível ao voto popular antecipado a pretexto de indefinições estratégicas decorrentes de imprevisibilidade política num país que acabou de sair de eleições, que gere uma situação de âmbito global na saúde pública e tem uma presidência europeia pela frente já no primeiro semestre do ano que vem", avisou Marcelo.
O intervalo de tempo em que seria possível marcar eleições - e a que o Presidente da República se referia - é uma janela temporal curta, de apenas cinco meses, ou seja, de 6 de abril a 9 de setembro. Em abril, Marcelo deixa de estar inibido pelos prazos constitucionais por terem passado seis meses sobre a posse do governo, mas o calendário volta a impedi-lo de destituir a Assembleia da República quando faltarem seis meses para terminar o seu mandato - o que acontece a 9 de março de 2021.
Para o chefe do Estado, o caminho a seguir é outro: "Baixar a temperatura do ambiente vivido, resistir à tentação sistemática, venha de onde vier, poderes ou oposições, do aceno a crises políticas apelando a dissoluções, definir rumos minimamente estáveis e agir no quadro parlamentar que os portugueses escolheram."
António Costa Pinto, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sublinha essa dimensão do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa que remete para a estabilidade governativa, que exige entendimentos e consensos quando o PS não tem maioria parlamentar nem pré-acordos. "Foi uma intervenção de aviso ao Governo a dizer que a inexistência de acordos escritos exige ao Executivo evidentemente maior capacidade para forjar entendimentos. Um aviso à navegação."
Para o comentador político Pedro Marques Lopes, na questão da estabilidade, os avisos são dirigidos ao PS e ao PSD, mas sobretudo ao PS e ao Governo. "Refletem uma preocupação com a atual incapacidade do Governo de gerar consensos até mínimos, como aconteceu com o chumbo da eleição no Parlamento dos juízes para o Tribunal Constitucional, do presidente do CES e de elementos para o Conselho Superior da Magistratura. O nosso regime não aguenta a não existência de consensos mínimos. E o Presidente da República está a dizer ao Governo que não se atreva a ensaiar crises políticas."
A Pedro Filipe Soares não lhe parece que haja instabilidade, mas antes uma nova fase de relacionamento entre partidos, que exige precisamente acordos pontuais em cada uma matéria. "O discurso tem o mérito de trazer alguma tranquilidade, mas parte da base de uma instabilidade institucional que não existe. É uma preocupação um pouco exacerbada", refere o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, apontando, contudo, os tiques de um governo que age como maioritário e a "presunção de autosuficiência" que decorrem de uma postura de rejeitar a assinatura de acordos a seguir às eleições legislativas.
Um discurso pertinente e oportuno, afirma, por seu turno, o deputado do CDS, João Almeida, que revê na afirmação presidencial sobre um fim de ciclo a própria atitude do Governo. O caso mais flagrante, acrescenta, é o facto do executivo e do ministro das Finanças, Mário Centeno, "iniciar formalmente funções mantendo uma espécie de tabu com a possibilidade de ir para o Banco de Portugal". O que, para o parlamentar do CDS, levanta outra questão institucional: o facto de decisores políticos transitarem para os reguladores.
Marcelo fala em baixar a temperatura política, mas para João Almeida, o ambiente não está especialmente crispado. E a prova disso é que, mesmo sem geringonça, e num momento tão importante que correspondeu à aprovação do Orçamento do Estado, a proposta do governo foi aprovada.
Mais uma declaração de Marcelo Rebelo de Sousa. "Ou se faz um esforço renovado num quadro parlamentar mais fragmentado e com menos pontes em todos os azimutes para que a governação seja mais estável nas opções e na base de sustentação dessas opções e também mais virada para mais do que a gestão do dia a dia ou teremos a aventura orçamento a orçamento, lei a lei, de coexistir com uma geometria variável ou imprevisível."
Nesta situação específica, o deputado João Almeida entende que Marcelo não se está a dirigir ao CDS, antes a uma renovação da geringonça ou mesmo a um bloco central. Uma coisa é certa: "Não foi mais uma intervenção do Presidente, pela abrangência, pela profundidade, que deu ao assunto."
Marcelo pediu pontes, diálogo, consensos. O deputado Pedro Filipe Soares entende que quem está no governo é que tem capacidade para o fazer. "O BE já mostrou várias vezes que é uma força de diálogo. Até num período em que o Presidente achava que se dispensava um acordo para a nova legislatura, e que governo também rejeitou, o BE estava disponível para os fazer. Agora parece-nos que o Presidente reconhece que esse caminho não foi o mais acertado."
A estabilidade, mas também os populismos: "Ou os sistemas político e social entendem aquilo em que perderam o pé ou não entendem. Partidos, parceiros económicos e sociais, confederações patronais, confederações sindicais e outros protagonistas institucionais, da justiça à administração pública ou mudam de vida, que é mesmo de mudar de vida e não esconderem-se atrás da ilusão que as leis resolvem o que a prática, os comportamentos não resolvem, ou alguém preencherá os vazios que vão deixando e depois é tarde de mais para acordarem. Estas batalhas ganham-se antes e não depois dos vazios, ganham-se com convicções e com factos e não com palavras e indignações tardias. E de nada vale rotular, chamar nomes, ou travar na secretaria debates suscitados por aqueles que venham tentar ocupar os vazios criados", afirmou o chefe do Estado.
Mais à frente, Marcelo Rebelo de Sousa voltou ao tema. "A democracia por definição tem que integrar no seu seio todas as sensibilidades, concluindo os radicalismos mais radicais contra o sistema. Compete-lhe não os marginalizar, mas integrá-los, mas não pode viver o dia-a-dia em situação de rotura constante. Isto aplica-se tanto aos temas ditos fraturantes como aqueles que não são."
É esta segunda dimensão, a do populismo, que António Costa Pinto sublinha do discurso do Presidente. "Ele defende que tem de se normalizar a existência de um partido populista. É claramente uma intervenção contra os modelos que defendem um cordão sanitário em torno do Chega."
Pedro Marques Lopes aponta noutro sentido: "Quanto aos populismos, acho que está a aconselhar que sigam o que que ele próprio faz. Ou seja, combater o populismo com popularidade."
Já Adelino Maltez aborda a questão do Chega depois de uma análise global ao discurso de Marcelo, utilizando a imagem do árbitro que está a jogar, como lhe é permitido constitucionalmente, quando se aproxima a pré-campanha para as eleições presidenciais: "O Presidente da República quer manter o seu espaço de autonomia, sabe que há um André Ventura candidato [líder do Chega], que Ana Gomes ameaça, ele tenta puxar os cordelinhos para o controlo da situação."
O deputado democrata-cristão João Almeida diz partilhar a ideia do Presidente de não se combater os populismos na secretaria, porque entende que este tipo de reação dá ainda mais dá força a estas estruturas políticas. Marcelo não o disse, mas em causa está o projeto de lei do Chega que propunha a castração química como pena acessória para pedófilos, cuja discussão foi recusada pelo presidente da Assembleia da República, alegando que não cumpria os requisitos constitucionais para subir ao plenário. Na sua opinião, o agendamento permitiria verificar que o diploma teria apenas o voto do deputado que o propôs, em vez de dar azo a queixas.
O Bloco de Esquerda também votou contra a deliberação que impediu o projeto de lei do Chega de ser discutido. Em primeiro lugar, refere Pedro Filipe Soares, porque "a Assembleia da República não pode ser uma antecâmara do Tribunal Constitucional". Em segundo, porque ao impedir-se a discussão da medida permitiu a vitimização de André Ventura.
E sobre os vazios que vão sendo criados e poderão ser aproveitados pelos populismos? O líder parlamentar dos bloquistas entende que este recado do Presidente se destina mais à direita do que à esquerda. E justifica com a "fragmentação que existe à direita, fruto de um programa político que não foi mobilizador" e que - acrescenta - não sendo muito diferente do que vigorou por quatro anos perdeu o crédito e permitiu o aparecimento de outras forças políticas.