Para quebrar a maldição africana

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Agostinho Neto, num discurso célebre, disse uma vez que África parece um pedaço de carne onde cada um vem debicar o seu pedaço. Penso recorrentemente nessa frase. A mesma voltou a assomar-me à cabeça nos últimos dias. De facto, entre o final de julho e o início de agosto, três dirigentes mundiais visitaram o continente, tendo a guerra da Ucrânia como pano de fundo. Foram eles o presidente francês, Emmanuel Macron, o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov, e o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.

O que essas visitas têm em comum? Todos esses altos dignitários procuram um posicionamento dos países africanos face à nova conjuntura internacional, criada pelo conflito russo-ucraniano (fórmula evidentemente simplificada, mas adiante). Desde logo, os principais contendores estão claramente incomodados com a posição de cautela que o continente africano tem assumido em relação ao mencionado conflito. Por outro lado, e pensando nos prováveis desdobramentos da guerra ucraniana, tentam influenciar os governos africanos a antecipar uma posição de natureza geopolítica que poderá ditar o futuro imediato do mundo: apoiar o unilateralismo ocidental, com os EUA e a NATO à cabeça, ou a criação de uma ordem mundial multilateral, que substitua o mundo unipolar saído do fim da guerra fria?

Estando o mundo, previsivelmente, à beira de uma guerra energética, as pressões das principais potências sobre África compreendem-se, em particular, por causa do potencial do continente nesse domínio. A propósito, o economista bissau-guineense Carlos Lopes, alto-representante da União Africana junto da União Europeia, reconhece (mau grado, como veremos adiante, não o considerar uma prioridade continental) que África tem potencial para fornecer energia à Europa, em particular o gás, mas o problema é como fazer chegar o produto ao seu eventual destino.

Como intelectual africano, o que me interessa, obviamente, é saber se as nossas lideranças serão capazes de colocar à frente os verdadeiros interesses dos nossos países e dos nossos povos ou se permitirão, ao invés disso, a concretização da observação de Agostinho Neto. Carlos Lopes parece otimista, ao menos a avaliar pela seguinte declaração, que fez à rádio Deutsche Welle: "África já passou da fase em que aceitava ser tratada com um campo de influência de uns ou de outros, ao sabor de interesses que não controlava".

Assim, e relativamente ao conflito do momento, Lopes avaliza a posição de cautela dos países africanos. "Por várias razões, África não tem nenhum interesse em entrar num concurso de beleza para ver quem é melhor", disse ele à DW, antes de lembrar que, durante o auge da pandemia da covid 19, os EUA e os países europeus adotaram uma série de restrições à exportação para o continente de medicamentos vitais, reagentes, equipamentos respiratórios ou de proteção individual.

Sendo previsível que, além da guerra energética, a guerra da Ucrânia terá uma série de consequências no plano dos alimentos, finanças internacionais, inflação e logística globais, o renomado economista defende que África deve defender os seus interesses, não tendo de escolher, por conseguinte, ser pró-russa ou pró-ocidental. Ele "mata" assim o argumento hipócrita das violações do Direito Internacional: "Há muito o que se lhe diga", lembrando, a propósito, que muitos dos conflitos existentes no continente são devidos à intromissão externa, quer ocidental (casos da Líbia ou do Mali) quer da Rússia e de potências do Médio Oriente, como a Turquia.

Acerca, particularmente, do potencial energético de África, Lopes defende que a prioridade do seu desenvolvimento e utilização deve ser intra-continental. Os países da região, segundo ele, devem pensar nas soluções energéticas do continente não em termos de exportação, mas, sim, do que precisam para a sua transformação e sobretudo para a sua própria industrialização.

Terão os líderes africanos essa visão e essa determinação?

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista
África 21

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