"Papi", o barão de droga, a cocaína roubada e os inspetores da PJ

António Benvinda, antigo inspetor da PJ, contou tudo sobre o envolvimento de dois elementos da Judiciária no tráfico de droga, para proteger a família. Em causa, um carregamento de 280 quilos de cocaína que terá sido roubado a um cartel colombiano
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Foi o único a prestar declarações no primeiro dia de julgamento em que dois antigos inspetores da Polícia Judiciária e um cabo da GNR estão acusados de colaborarem com traficantes de droga sul-americanos a troco de dinheiro, no âmbito da "Operação Aquiles". Fê-lo por videoconferência, sem imagem, mas a sua voz foi a mais audível na sala de audiências lotada de advogados e de arguidos - estiveram 21 presentes de um total de 29. A história que António Benvinda contou deixou desconfortáveis muitos do que se encontravam sentados no banco dos réus.

Benvinda, também ele um antigo inspetor da PJ, decidiu contactar a Judiciária depois de alegadamente ter sido ameaçado de morte - assim como a sua família - pelo barão de droga colombiano conhecido pelo apelido "Papi". Como contou esta tarde de terça-feira em tribunal, os colombianos já teriam "um dossier completo" sobre quem eram os seus filhos, mãe e irmã, onde moravam e a casa de Benvinda estaria a ser vigiada por detetives privados contratados pelo cartel de droga.

António Benvinda também é arguido neste processo. No depoimento, contou ao juiz que trabalhou para a PJ "há 30 ou 40 anos" e é dessa altura que conhece Carlos Dias dos Santos, antigo coordenador de investigação criminal no combate ao tráfico de estupefacientes da Polícia Judiciária. ​​​​Benvinda estava envolvido no mundo do crime e revelou, esta tarde, que foi ele quem sondou o antigo coordenador de investigação criminal sobre se seria possível facilitar o desembarque, em Portugal, de um contentor carregado de droga oriunda da Colômbia. Quando questionado por que motivo pensara que o inspetor da PJ o ajudaria, foi taxativo: "Todos o conheciam por ser um facilitador nesse tipo de negócios [de tráfico de droga]", afirmou.

Segundo o seu depoimento, a droga nunca foi encontrada - o contentor estava vazio quando foi aberto, e Dias dos Santos teria dito que não sabia o que tinha acontecido ao carregamento. Mas foi a justificação que deu, segundo Benvinda, que gerou a desconfiança: "Ele disse-me que as latas estavam vazias, mas os colombianos contaram que a droga não estava nas latas, mas sim debaixo das paletes". Benvinda esperava receber "100 mil euros" pelo negócio. Dias dos Santos e Ricardo Macedo, ex-inspetor-chefe da Unidade Central de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ, receberiam "15 por cento" do valor total da mercadoria. "A dividir pelos dois?", perguntou a juíza. "Não sei", respondeu Benvinda, que sublinhou nunca ter falado com Macedo. "Papi", o barão de droga colombiano, segundo Benvinda, nunca pensou que Macedo estive esse envolvido no alegado roubo da droga. Para o narcotraficante, "ele era uma ótima pessoa e nunca o faria", contou a testemunha.

"Os ingleses", "os colombianos" e o cabecilha do Porto

Mas foi só semanas depois de o negócio ter falhado e a droga desaparecido, que António Benvinda terá falado com "Papi", o líder do cartel sul-americano. Antes, só falava com "uns ingleses, na casa dos 20 ou 30 anos, cheios de tatuagens" e com "Tony", colombiano de "cerca de 40 anos" que se fazia acompanhar sempre por um "sicário, tipo índio", contou o arguido, o único a falar no primeiro dia de julgamento.

Começou a prestar declarações - disse que não iria responder às perguntas dos advogados, para depois mudar de ideias e dizer que afinal poderia responder (ficará para a próxima sessão) - ao início da tarde desta terça-feira. Descreveu como conheceu Carlos Dias dos Santos "há mais de 30 anos" - nos corredores das instalações da PJ - como usava os serviços de motorista de António da Ponte (também arguido), porque este "conhecia muito bem a zona Sul do Tejo e os ingleses só se queriam encontrar desse lado. Já os colombianos só se encontravam comigo em Lisboa". Contou também como conhecia João Freitas - detido no Estabelecimento Prisional do Porto e que não estava presente na audiência por um lapso dos serviços em relação às datas do julgamento, como esclareceu o tribunal.

João Freitas é considerado o cabecilha do quartel de droga em Portugal e terá sido ele, acompanhado por outros elementos, que terão ameaçado a família de António Benvinda, contou o arguido, e testemunha, esta terça-feira. Sabia que era ele porque "ele tem pronúncia do Norte, é alto e moreno, e a minha irmã descreveu-o".

As declarações prosseguiram com a história do negócio que terá corrido mal. Dias dos Santos concordou em ajudar no desembarque do contentor com a droga colombiana. "Ele controlava os despachantes, tinha bons contactos na Alfândega", mas acabaria por mudar de despachante (não confiaria no que tinha sido apontado em primeiro lugar) e o contentor com paletes de ananases em lata chegou a Sines. Mas a droga não estava lá. "Era o dia 7 ou 8 de junho [de 2013], meteu-se o fim de semana e o feriado de 10 de junho, sei que depois disso o Dias dos Santos disse que a droga tinha sido apreendida e que a notícia iria sair no jornal", contou Benvinda.

"O que me move é a segurança", respondeu António Benvinda ao juiz

Depois, tudo de descontrolou. Os "ingleses" desapareceram e foi Tony, acompanhado por um sicário, que começou a pressionar António Benvinda. João Freitas teria ido a casa da irmã e da mãe do antigo inspetor da PJ com ameaças. "Os colombianos disseram-me que tinham um dossier sobre mim e sobre a minha família, sabiam onde todos moravam, tinham detetives a vigiar-me", disse. Segundo a testemunha, foi aqui que quebrou. Ligou para a Polícia Judiciária e falou com o inspetor Filipe Henriques. A partir de então todos os encontros com os colombianos foram monitorizados pela PJ: "Não está no processo?", perguntou várias vezes Benvinda ao tribunal.

Decidiu contar tudo porque, em resposta ao juiz, temia pela sua vida e pela vida dos seus familiares. "O que me move é a segurança", afirmou. Contou estar inserido no programa de proteção de testemunhas porque ainda teme as consequências das suas revelações. "Tudo o que digo corresponde à verdade", afirmou. Sobre se ainda tem medo, disse: "Há sempre preocupação".

Pelo meio do depoimento ainda apontou outros nomes: o "anão" - alcunha de um homem ligado ao tráfico de droga chamado Pires Coelho e que terá encontrado em casa de Carlos Dias dos Santos; contou que foi a mulher de Ricardo Macedo quem foi à GNR contar que o marido tinha dinheiro do tráfico de droga em casa e revelou ter falado com o advogado Vítor Carreto - que chegou a ser arguido neste processo, juntamente com a advogada de João Freitas, Ana Cotrim - para que este o pudesse ajudar "a encontrar uma solução" para a droga desaparecida.

António Benvinda vai continuar a ser ouvido na próxima sessão do julgamento, que está marcada para o próximo dia 30 de outubro.

Carlos Dias dos Santos e Ricardo Macedo são acusados de tráfico de droga agravado, associação criminosa com vista ao tráfico e corrupção passiva para prática de ato ilícito. Na lista de arguidos constam vários traficantes de droga e alguns nunca foram ouvidos nem se conhece o seu paradeiro. É o caso de Franquelim Lobo, considerado um dos maiores traficantes de droga portugueses. No ano 2000 chegou a ser condenado a 25 anos de prisão mas o julgamento foi anulado e na repetição acabou por ser absolvido. Existe um mandado de detenção internacional pendente. O narcotraficante tinha residência em Espanha mas as autoridades não o conseguem localizar.

Segundo o Ministério Público, os dois elementos da PJ e o cabo da GNR, José Baltazar da Silva, do destacamento de Torres Vedras, além de darem informações às organizações criminosas que protegiam, através dos contactos com os pretensos informadores, por vezes recebiam informações das mesmas organizações relativamente ao tráfico desenvolvido por organizações "concorrentes". E faziam as detenções e apreensões que permitiam manter um estatuto de competência na PJ.

No caso dos elementos da PJ, foram detetados vários depósitos em numerário, que a acusação diz terem origem nos subornos, assim como o recurso a contas bancárias de familiares e a venda de uma casa no sul de Espanha por Dias dos Santos que os investigadores acreditam ter sido paga com o dinheiro colombiano. Ricardo Macedo é suspeito de ter ido a Marrocos informar um narcotraficante de uma operação da PJ com vista à sua detenção que saiu frustrada devido à ação do ex-inspetor.

No decurso da investigação, revelou o DCIAP, foram apreendidos mais de 900 quilos de cocaína e mais de 30 quilos de haxixe, bem como diversas viaturas e outros valores, designadamente dinheiro, no montante de várias dezenas de milhares de euros.

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