Quando Bruno João iniciou o estágio na urgência pediátrica do Hospital Garcia de Orta (Almada), em janeiro deste ano, o coronavírus ainda estava longe. Hesitante entre ginecologia/obstetrícia e pediatria, o jovem médico entrou em 2020 com o entusiasmo próprio de quem ia, pela primeira vez, pisar o terreno. Mas a realidade tinha outros planos para ele. Dois meses depois, declarada a pandemia, a covid-19 e o medo de se ser infetado afastaram dos hospitais a maioria dos utentes.."Teoricamente só tive dois meses para contactar com essa área. A urgência começou a ficar vazia, e entretanto o hospital mandou-nos para casa, para ajudarmos nos rastreios e no acompanhamento, ao telefone, das pessoas infetadas, encaminhando-as depois para os médicos de família." Num apartamento arrendado em Lisboa, o médico natural de Pombal acabaria por fazer dali o seu "consultório". Até que em maio decidiu dedicar-se a estudar para o exame, agora marcado para 30 de novembro. Tem sido assim desde há quase seis meses, porque sabe que o tempo não para, mesmo quando a vida parece suspensa. Entretanto, o principal problema mantém-se: "Há pouco mais de 1800 vagas e mais uma vez muita gente vai ficar de fora.".Bruno, 26 anos, e a namorada são apenas dois entre os mais de 2500 jovens médicos que vão a exame neste ano. No outro extremo do país há histórias comuns, relatos de quem já experimentou a ansiedade de um exame como aquele várias vezes. É o caso de Filipa (chamemos-lhe assim), que porém está noutra fase da vida. Entrou tarde para o curso de Medicina (primeiro fez Análises Clínicas) e de permeio arriscou construir uma família..Quando fala ao DN está a terminar uma licença de maternidade prolongada e a meio de um isolamento por parte do filho mais velho, de apenas 4 anos. A bebé, que nasceu poucos dias antes de o país entrar em confinamento, revelou algumas alergias, e isso levou-a a prolongar a licença..Quando pensava "que nos primeiros meses iria ficar em casa, com ela, enquanto o mais velho estaria no colégio, e por isso teria algum tempo para me preparar, aconteceu a pandemia", conta Filipa, que se viu de repente em casa, a dividir o espaço com o marido (em teletrabalho) e os dois filhos pequenos. E se até então pensara em escolher uma especialidade como infecciologia, "neste momento estou a pensar em algo mais calmo, como a imunoterapia, por exemplo"..A médica tem agora 39 anos e dentro de poucos dias vai regressar à emergência do Centro Hospitalar do Porto, na medicina interna. Na verdade, no final do verão fez um intervalo na licença por um mês, enquanto o marido a revezou. E essas terão sido das semanas mais duras da sua vida. Foi quando sentiu, na pele, o impacto que a pandemia já está a ter, mas terá muito mais no futuro, quando falamos da formação de jovens médicos. "Os colegas que iam fazer o internato em áreas não covid viram quase tudo cancelado. Foram colocados a fazer inquéritos, na sua maioria, quando sabemos que um médico necessita de ter formação dirigida. Por outro lado, as pessoas deixaram de ir à urgência geral. E quando vão, chegam-nos com patologias gravíssimas, com enfartes, cancros em último estádio. Muitas morrem dias depois."."Vai haver algures um ano em que não vão sair especialistas", considera Filipa, olhando para o quadro que se vai formando no país. Entretanto, "centenas continuam a reformar-se, e outras centenas vão para o privado. Vai ser muito complicado para o Serviço Nacional de Saúde", conclui..À medida que 2020 caminha para o fim há milhares de jovens médicos a terminar o que é denominado como "ano comum", em que era suposto contactarem com as mais diversas áreas da medicina. Todos os dias Joana pensa nisso, quando se dirige à unidade de saúde pública onde entrou pela primeira vez em março. "Nunca mais vamos ter oportunidade de passar por estágios de cirurgia e medicina familiar, por exemplo. E com isto, o exame foi marcado sem eu ter tido tempo de fazer qualquer investigação. Já fiz o do ano passado e não me correu nada bem", conta ao DN, ela que também prefere o anonimato. De resto, é um traço comum que encontramos entre os jovens médicos, que vivem por estes dias não só a pressão do exame que se aproxima como o receio de não conseguirem uma das pouco mais de 1800 vagas disponíveis. "É uma sensação de falhanço.".Natural do Alentejo, foi lá que Joana quis regressar depois do curso em Lisboa, e é lá que quer ficar a trabalhar. Imaginou que poderia ter mais contacto com a medicina geral e familiar (a especialidade que sempre a entusiasmou), "mas acabei por fazer só saúde pública. Era suposto estar a passar por várias especialidades", conclui..Todos os anos, a Associação de Médicos pela Formação Especializada (AMFE) alerta para a injustiça do sistema de acesso à especialidade. Neste ano, junta-se essa preocupação maior: o impacto da pandemia na formação dos novos médicos. Constança Carvalho, 29 anos, presidente da direção, foi uma das pessoas que fizeram o exame duas vezes. "Fui interna em Barcelos, em 2018, acabei por rescindir e repetir o exame.".No ano passado foi interna da formação geral no Hospital de Santo António. É agora médica de saúde pública na Unidade do Alentejo Litoral, e é partir daquele território que observa como "muitos dos problemas se mantiveram e agravaram. Aliás, os problemas que existem nesse caso [do acesso à especialidade] não surgiram com a pandemia". De resto, lembra que a associação (constituída maioritariamente por jovens médicos) nasceu "para tentar mudar este sistema que deixa cada vez mais pessoas de fora. Não é um sistema que faça sentido". Pelos cálculos de Constança Carvalho, entre as pessoas que desistiram no dia das escolhas como as que desistiram ao longo do ano, ou as que nem sequer se inscreveram já depois de terem feito o exame, foram 1100 as que ficaram de fora em 2019. "Algumas tiveram uma nota em que sentiram que já não se justificava tentar a especialidade."."O que mudou com a pandemia foi o trabalho para a maioria das especialidades. E depois é muito mais fácil pegar num médico com um vínculo precário e dizer-lhe que vai fazer as horas que forem precisas num internamento covid, numa urgência, o que for, do que a um médico que tem um contrato laboral", salienta. Além disso, lembra que "um médico que não entre na especialidade tem a alternativa de trabalho muito mais limitada. A maioria está a recibo verde, e na maioria das vezes são falsos recibos verdes, com horários fixos"..A falta de médicos especialistas é geral em todo o país, mas no Alentejo é gritante. E por isso Constança e o companheiro trocaram o norte do país pela região mais descoberta, onde poderiam fazer a diferença, e conheceram uma outra dimensão do problema: "Temos médicos sem especialidade em medicina geral e familiar que têm atribuídas listas de utentes nos centros de saúde. Não é difícil perceber por que odiamos o termo "médicos indiferenciados". São pessoas que têm o curso de seis anos e o internato de formação geral, só que são médicos sem especialidade e veem-se obrigados a fazer trabalhos para os quais não estão muito à vontade.".De resto, a presidente da AMFE não tem dúvidas sobre o tremendo impacto deste tempo na formação: "Houve serviços que deixaram de fazer a sua rotina normal e os médicos deixaram de ter contactos com esses serviços. Nos estágios, muitos internos tiveram de ser deslocalizados do seu internato para estar a trabalhar muitas horas na covid.".Neste cenário de hospitais com consultas suspensas e cirurgias adiadas, Constança Carvalho escolheu o que parece ser a especialidade certa, aos olhos dos outros: testar, na prática, aquilo que gerações seguidas só conheciam dos livros - uma pandemia. Mas até aí considera que o seu trabalho foi redutor, por ser quase exclusivamente concentrado no rastreio e acompanhamento da covid-19, quando afinal a saúde pública é tão abrangente..E esse é o lado positivo que o bastonário da Ordem dos Médicos também encontra neste capítulo da história. "A pandemia está a proporcionar uma oportunidade única de aprendizagem aos nossos jovens médicos e acredito que pode até influenciar algumas das escolhas quanto ao futuro profissional. Ao mesmo tempo, a dimensão humanista e solidária dos médicos portugueses sai reforçada, bem como a qualidade técnica e científica que sempre nos definiu", diz ao DN Miguel Guimarães. Aos jovens médicos que por estes dias se preparam para o exame deixa palavras de incentivo. "O país precisa muito deles e a importância da saúde saiu definitivamente reforçada com esta pandemia". Porém, "sabemos, e não podemos negá-lo, que a pressão e a disrupção que a covid-19 causou nos sistemas de saúde teve impacto na formação dos alunos de Medicina, dos internos da formação geral e dos internos da especialidade - como no trabalho de todos os médicos e de todos os profissionais de saúde. Estamos atentos e a procurar soluções para que ninguém seja prejudicado, quer na qualidade da formação quer na formação especializada e carreira médica", afirma..Constança Carvalho e a associação que representa não são tão otimistas. "Quando isto tudo passar é que vamos notar os efeitos colaterais."