Pandemia e as crises nas relações transatlânticas

Análise de Luís Nuno Rodrigues, diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE.
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Numa das declarações de Donald Trump na fase inicial da pandemia, quando esta se parecia estar a generalizar pela Europa e pelos Estados Unidos, o presidente norte-americano responsabilizou os europeus pela sua introdução nos Estados Unidos. Anunciou também, de forma repentina e sem consulta prévia aos seus aliados europeus, o cancelamento de todas as viagens entre os Estados Unidos e a Europa. Esta decisão unilateral motivou de imediato a reação dos responsáveis europeus, com a Presidente da Comissão, Ursulavon der Leyen, a declarar que a pandemia de Covid-19 era uma crise global e deveria ser abordada como tal, isto é, através de cooperação internacional e não de ações unilaterais.

As relações transatlânticas ainda não recuperaram desta primeira ronda de hostilidades. Percorrendo aquilo que analistas internacionais, académicos e até políticos têm escrito nas últimas semanas sobre o impacto da pandemia nas relações transatlânticas, constata-se o tom pessimista e a abundância das metáforas clínicas para descrever a situação. Em ambos os lados do Atlântico podemos ler que as relações transatlânticas se encontravam já em "cuidados intensivos" antes da pandemia, mas tornaram-se agora ainda mais "tóxicas", acabando por entrar num verdadeiro "coma" e tornando-se uma das primeiras "vítimas geopolíticas do vírus".

É verdade que o impacto da pandemia se fez sentir sobre uma realidade já de si muito degradada. Desde o final da Guerra Fria que as relações entre os Estados Unidos e a Europa, quer no âmbito da NATO, quer no que diz respeito à União Europeia, não voltaram a ser as mesmas. Vários desenvolvimentos justificaram, ao longo das décadas, a gradual deriva transatlântica: o desaparecimento da ameaça soviética comum, o crescente unilateralismo americano, o reforço da integração europeia, a aposta diferenciada no hard power e no soft power, a emergência do mundo pós-ocidental.

Os primeiros anos da administração Trump vieram exacerbar ainda mais o descontentamento dos europeus face aos Estados Unidos. Desde logo, devido ao abandono pelos Estados Unidos de importantes iniciativas multilaterais, seja no âmbito das alterações climáticas, como o acordo de Paris, da Cultura, como a UNESCO, ou da não-proliferação, como o acordo nuclear sobre o Irão. Depois, pela constante pressão norte-americana sobre os países europeus, relativamente a assuntos como a despesa europeia com a defesa e sua contribuição para a Aliança Atlântica. Ou como a questão tarifária, que acabou por gerar uma verdadeira guerra comercial entre os dois lados do Atlântico. Por fim, pelo aparente desinteresse e falta de consulta dos Estados Unidos relativamente à opinião da União Europeia sobre temas como a retirada das tropas americanas da Síria ou o ataque que vitimou o general iraniano Qasem Soleimani no Iraque.

O que trouxe então a crise da pandemia ao já deteriorado clima das relações transatlânticas?

Em primeiro lugar, é inegável que o comportamento e as declarações do Presidente Trump, a sua procura obsessiva de culpados pela pandemia, e a postura competitiva que os Estados Unidos assumiram no que diz respeito ao acesso à vacina, têm trazido ao de cima a conceção prevalecente em Washington, seguramente desde 2016, de que o sistema internacional é uma arena de competição permanente entre os Estados. Estes movem-se unicamente em defesa dos seus próprios interesses e com a consequente minimização da importância de normas de conduta, instituições e alianças internacionais. Encontra-se neste caso a aliança transatlântica, um dos pilares do sistema internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Em segundo lugar, a crise tem também revelado de forma muito clara a crescente desconfiança dos Estados Unidos relativamente a instituições multilaterais e, por conseguinte, a sua crescente preferência por soluções unilaterais. E o unilateralismo norte-americano, se bem que sempre tenha existido, corrói os alicerces da aliança transatlântica. Veja-se a este respeito a posição dos Estados Unidos relativamente à Organização Mundial de Saúdecom o corte abrupto do financiamento a esta organização e a resposta dos europeus a essa decisão, comparando-a a alguém que atira o piloto de um avião pela janela fora em pleno voo.

Em terceiro lugar, agravou-se também nas últimas semanas a evidente falta de vontade e de capacidade dos Estados Unidos em desempenhar um papel de liderança internacional na abordagem e na resolução dos principais problemas globais, algo que já se verificava em muitas outras áreas, como por exemplo as alterações climáticas. O ministro dos estrangeiros alemão declarou já que o comportamento dos Estados Unidos face à pandemia, subavaliando os efeitos do vírus, não era um "modelo" adequado para ser seguido pela Europa. Os Estados Unidos, por seu turno, recusaram participar na iniciativa "Coronavirus Global Response", liderada pela União Europeia com o objetivo de angariar fundos para o desenvolvimento de uma vacina.

Por fim, a pandemia vem acentuar uma outra realidade, a meu ver muito desestabilizadora das relações transatlânticas, que é a perceção existente na Europa de que os Estados Unidos se transformaram num país ingovernável, à beira do caos, e com um sistema de saúde que não consegue dar resposta, sobretudo às populações mais desfavorecidas. Não que a realidade nalguns países europeus pareça ser mais animadora, mas a pandemia tem contribuído para reforçar a ideia de que existe hoje em dia um fosso quase intransponível no que diz respeito aos valores vigentes e dominantes nos Estados Unidos e na Europa.

E os valores contam na política externa? Esta é a pergunta de Joseph Nye, no título do seu livro mais recente sobre a presidência norte-americana nos últimos 70 anos. Lamentavelmente, parecem contar cada vez menos enquanto cimento aglutinador de uma comunidade transatlântica com valores e objetivos comuns que determinem de forma duradoura o comportamento das nações dos dois lados do Atlântico.

NOTA: Este texto representa uma síntese da intervenção do autor no webinar "Espaço Transatlântico em tempos de COVID-19", organizado pelo Centro de Estudos Internacionais do Iscte e pelo Instituto da Defesa Nacional, em parceria com o Diário de Notícias. A próxima sessão decorrerá no dia 14 de maio, às 18h, e será subordinada ao tema "Europa em tempos de COVID-19", com participação de Isabel Ferreira Nunes (IDN), Ana Paula Brandão (Universidade do Minho), Riccardo Marchi (CEI-Iscte) e moderação de Sofia Martins Geraldes (CEI-Iscte). O evento é aberto ao público em geral mas a participação requer inscrição prévia em https://bit.ly/3dkXuOO

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