PAN também propõe devolver o património cultural das ex-colónias
É um debate que fez pouco caminho em Portugal e, para já, a maioria dos partidos não reagem à proposta avançada pela deputada única do Livre, Joacine Katar Moreira, de avançar com a elaboração de uma listagem do património trazido das antigas colónias portuguesas com vista à sua devolução aos países de origem. Um tema sensível que tem levantado controvérsia em vários países europeus mas que já conduziu a alguns passos de "repatriamento" de bens culturais.
Mas há, pelo menos, um outro partido além do Livre que tem uma posição de princípio favorável à restituição de bens culturais ao país de origem e o consagrou no programa eleitoral. Na proposta com que se apresentou às legislativas, o PAN propõe "devolver o património cultural das ex-colónias existente em território português, após levantamento deste património por uma comissão técnica, assegurando-se assim a reposição de justiça histórica e que está já a ser levada a cabo em alguns países europeus, onde estão a ser restituídas algumas peças do património cultural das ex- colónias que integravam as coleções públicas desses países".
A Iniciativa Liberal já tem o voto decidido - vai votar contra. PS e PCP responderam ao DN que estão a analisar as propostas de alteração ao Orçamento do Estado, cujo período de entrega terminou na segunda-feira, e não se pronunciam, para já, sobre nenhuma em concreto. Também o Bloco disse não ter analisado ainda as propostas do Livre. PSD e CDS não responderam, num tema que ontem deu origem a polémica devido ao comentário de André Ventura dirigido a Joacine Katar Moreira.
Na proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2020, Joacine Katar Moreira defende a criação de um "grupo de trabalho composto por museólogos, curadores e investigadores científicos" com o objetivo de elaborar "uma listagem nacional de todas as obras, objetos e património trazidos das antigas colónias portuguesas e que estão na posse de museus e arquivos nacionais, por forma a que possam ser facilmente identificados, reclamados e restituídos aos Estados e comunidades de origem". Uma formulação que é praticamente decalcada do programa eleitoral do Livre, que já avançava com a proposta.
A medida insere-se numa proposta mais vasta, um Programa para a Descolonização da Cultura, que visa a "descolonização das coleções dos museus e monumentos do Estado, no sentido da sua recontextualização histórica e contextual". A deputada única do Livre propõe a alocação de verbas à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) no Orçamento do Estado deste ano para que seja criada uma comissão multidisciplinar "composta por museólogos, curadores, investigadores científicos (história, história da arte, estudos pós-coloniais e decoloniais) e ativistas antirracistas", com a missão de "forjar diretivas didáticas para a recontextualização das coleções dos museus e dos monumentos nacionais".
Muito em particular, acrescenta a proposta, no Museu Nacional de Arte Antiga, no Museu Nacional de Etnologia, no Museu Nacional de Arqueologia, na Torre de Belém e no Mosteiro dos Jerónimos. O objetivo passa por "estimular uma visão crítica sobre o passado esclavagista colonial, reenquadrando-o e recontextualizando-o à luz das mais recentes investigações académicas".
Há vários anos que países como a Alemanha ou a França travam este debate. Em 2017, numa visita ao Burkina Faso, o presidente de francês, Emmanuel Macron, deu o pontapé de saída no processo de devolução de obras africanas à sua origem. "Não posso aceitar que uma grande parte da herança cultural de vários países africanos deva estar em França. A cultura africana deve ser mostrada em Paris, mas também em Dakar, Lagos ou Cotonou. Essa será uma das minhas prioridades", garantiu então. Macron viria a pedir um relatório sobre este assunto ao economista senegalês Felwine Sarr e à historiadora de arte Bénédicte Savoy. O documento, que causou polémica não só em França mas em vários países europeus que se confrontam com a mesma questão, viria a concluir pela restituição de mais de 90 mil peças, a grande maioria localizada no Museu do Quai Branly-Jacques Chirac, em Paris.
Em julho de 2019, o governo de França e do Benim acordaram na restituição de 26 peças que foram saqueadas pelas tropas coloniais francesas, em 1892, dos Palácios Reais de Abomei, no Benim, mas a transferência ainda não se concretizou.
O ano passado, a Alemanha acordou devolver à Namíbia o padrão, com mais de 500 anos, colocado pelo navegador português Diogo Cão na costa central daquele país, em 1486 - um enorme padrão de calcário, com cerca de dois metros de altura e 350 quilos. "A devolução do padrão sinaliza claramente o reconhecimento da necessidade de reavaliar o nosso passado colonial e trabalhar em conjunto com os países de origem dos objetos coloniais para que possamos encontrar formas construtivas de compromisso e respeito uns pelos outros", disse então a ministra da Cultura alemã, Monika Grütters. Um mês antes, responsáveis da Cultura dos 16 Estados alemães tinham acordado iniciar um processo para a devolução de bens culturais aos países de origem.
Certo é que nenhum país, nem mesmo a França, desencadeou ainda um processo sistemático de devolução de artefactos levados de outros países, um processo que pode abrir a caixa de Pandora. Nos museus europeus não há apenas artefactos provenientes das antigas colónias africanas, mas também um imenso espólio das primeiras civilizações do Oriente, e a questão levanta-se até entre países europeus - há anos que a Grécia pede a devolução dos frisos do Partenon que estão em exposição no Museu Britânico.
Em Portugal, o assunto veio à tona em finais de 2018, quando a então ministra da Cultura de Angola, Carolina Cerqueira, em entrevista ao Expresso, levantou a questão da restituição de peças que estão nos museus portugueses. "É imperioso que a diplomacia angolana, em colaboração com o Ministério da Cultura e outros departamentos ministeriais, possa dar início a consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade e da posse, por um lado, e, por outro lado, da exploração de bens culturais angolanos no estrangeiro", sublinhou então.
O DN questionou ontem o Ministério da Cultura sobre a existência de algum pedido de restituição de bens culturais a Portugal, mas não obteve resposta. Em abril do ano passado, em entrevista ao Público, a titular da Cultura, Graça Fonseca, adiantava que não existia então nenhum pedido para a devolução de obras. "Se vier a existir, ver-se-á."
Como explicou ao DN o diretor do Museu de Etnologia, Paulo Costa, vários museus portugueses albergam peças que vieram de antigas colónias. É o caso da Universidade de Lisboa, que incorporou os acervos do Instituto de Investigação Científica e Tropical (antiga Junta de Investigações do Ultramar, de 1963 e 1985, e Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais, de 1936). O Museu de Etnologia, em Lisboa, será provavelmente a instituição museológica portuguesa que tem no seu espólio mais obras de arte oriundas das ex-colónias portuguesas, assim como de outros lugares do mundo: "São peças recolhidas no âmbito de investigações levadas a cabo pelo museu e que ilustram o modo de vida de outros países."