"Ouvi pela primeira vez guitarra portuguesa no rádio da cozinha, onde dava o romance do Tide"
Nasceu em Lisboa a 4 de dezembro de 1950, numa família onde a música era uma presença habitual. O pai, Francisco Caldeira Cabral, tinha hesitado em tornar-se cantor profissional mas ficara na arquitetura paisagista, de que foi um precursor em Portugal. Ao fim da tarde, cantava em família, com a mãe dos nove filhos a acompanhá-lo. Um dia Pedro ouviu no rádio da cozinha, onde o pessoal doméstico ouvia a Coxinha do Tide, o som de um instrumento que não conhecia. O pai disse-lhe que era guitarra portuguesa. Começou a aprender aos oito anos, aos dez recebeu a primeira guitarra, a mesma que fora oferecida ao avô paterno pela fadista e atriz Adelina Fernandes. Aos 16, acompanhava fadistas como Vicente da Câmara, José Pracana, Teresa Tarouca, Maria Teresa de Noronha. Juntou dois mais dois e dedicou-se à investigação da música antiga, tornando-se um especialista reconhecido em todo o mundo. Até já tocou com a cítara do arquiduque Fernando do Tirol, uma preciosidade do Museu de História de Arte de Viena.
Vamos focar-nos primeiro no encontro de guitarristas. O que vai acontecer?
São abertos ao público, com entrada livre, no Jardim de Inverno do Teatro Municipal de S. Luiz em Lisboa. Isto é uma réplica de uma experiência em Coimbra no início dos anos 2000, em que justamente fiz um encontro de guitarristas na sede dos Antigos Orfeonistas de Coimbra. Apareceram muitos intérpretes de guitarra, desde senhores de 80 e tal anos, ex-estudantes e jubilados das suas respetivas profissões de médicos, juízes, advogados, até aos jovens intérpretes, alguns dos quais vieram a tornar-se hoje figuras marcantes do panorama da guitarra de Coimbra. A experiência foi tão interessante que resolvi repeti-la várias vezes e alarguei para o âmbito internacional, enquadrado por uma instituição que era a Orquestra de Câmara do Centro. Mas esta ideia nunca foi realizada aqui em Lisboa.
A cidade onde o Pedro vive.
Exatamente. Nunca houve uma oportunidade para fazer isto e acho que esta pode ser uma oportunidade interessante por duas razões. Primeiro, porque a formação dos guitarristas hoje é feita com uma mistura e um diálogo de saberes formais. Eles são formados nos conservatórios, nas escolas desde o ensino básico até ao mestrado universitário. Por outro lado, continua a haver uma fortíssima incorporação de saberes informais, aprendizagem direta de pequenos truques e pequenos aspetos ligados à linguagem regional. Cada região do país tem um estilo, um pequeno segredo.
O encontro começa às 11:00...
Às 11:00 dou uma masterclass, com uma introdução da guitarra portuguesa no contexto das cítaras europeias. Há um movimento de revivalismo das cítaras em toda a Europa, sobretudo na Alemanha e na Suíça, mas também na Suécia, na Córsega, onde se tornou um instrumento-símbolo, tal e qual como no caso da guitarra portuguesa que foi eleita como símbolo identitário ainda no século XIX, pela geração de 70. O próprio rei tocava guitarra. Tudo isso teve bastante importância na qualificação. Faço uma reflexão sobre a história, a nomenclatura, a evolução física do instrumento, a dimensão simbólica, depois as técnicas, o repertório. E faço uma exemplificação desta dupla tradição - a escrita e a oral. É muito interessante do ponto de vista da nossa organologia. A maior parte dos instrumentos populares só tem a tradição oral. A guitarra portuguesa adquiriu-a através da herança da cítara, que começou por ser um instrumento de corte, depois ficou desvalorizada no século XVIII, depois é por essa desvalorização que se associa à marginalidade social de Lisboa.
E assim chega ao fado?
Exatamente. Mas em simultâneo aparece um outro instrumento socialmente muito valorizado que era a guitarra e acaba por recuperar a tradição da cítara, elevando-a aos mais altos escalões da sociedade.
E à tarde?
Há uma mesa-redonda com um conjunto de temas, um debate público em que vão participar, como a Academia da Guitarra Portuguesa e do Fado, uma associação de que fui um dos fundadores. Há um conjunto de guitarristas, de alunos de guitarra nos conservatórios, nas escolas de música.
Há uma comunidade que se interessa por este tema, não é um assunto que esteja na gaveta ou onde cada um esteja só por si?
Há um fenómeno muito interessante hoje que é o aparecimento de jovens que recuperam estas práticas musicais mais simples, mais diretas, que se afastam do consumo mais geral de música com instrumentos elétricos ou música de dança. A ideia de que os guitarristas têm de ser todos profissionais não é verdade. Há aliás uma grande tradição da prática guitarrística como amadora.
No sábado, à noite, faz um concerto chamado Guitarra de Ontem e de Hoje, com dois convidados, de ontem e de hoje.
O de ontem serei eu, mas também sou de hoje porque ainda cá estou. O Ricardo Rocha representa uma segunda rutura. Eu fiz uma primeira rutura nos anos 1980 com a tradição solística da guitarra, e há uma segunda rutura que é feita pelo Ricardo Rocha já no início do século XXI e que traduz uma linguagem muito própria, muito especial, para além de uma capacidade técnica e de um virtuosismo que todos nós lhe reconhecemos. É uma pessoa que se tem autoaperfeiçoado com incursões no domínio da composição que são extremamente interessantes e inovadoras.
E o Luís Marques?
O Luís Marques é um jovem, meu ex-aluno e querido amigo, representante da tradição de Coimbra, que hoje tem o grau de mestre em guitarra portuguesa e é professor em duas ou três escolas. Vem aqui para dizer que as novas gerações também se interessam pelo repertório tradicional da guitarra de Coimbra. Ele é um excelente intérprete da música de Artur Paredes, de Carlos Paredes, de Octávio Sérgio. Aliás a tese de mestrado dele é exatamente sobre este guitarrista e compositor.
O concerto tem três partes. A primeira é para a música antiga?
Na primeira parte toco com o meu trio, com o Joaquim António Silva e o Duncan Fox. Segue-se a nova música, primeiro com peças minhas e depois do Ricardo Rocha. E depois regressamos à ideia da música tradicional, da música da tradição direta, mas que por sinal recupera algumas peças que chegaram até nós através de manuscritos musicais, como o Fado Marinheiro, o fado mais antigo que se conhece, o Fado do Conde da Anadia que sabemos que foi composto por volta de 1860 e que foi sendo sucessivamente reeditado até aos anos 1930, não só em partitura mas também tocado em arranjos com piano. Foi uma daquelas melodias que ficaram para sempre.
Gostava que trauteasse para percebermos.
Não é o meu instrumento... Trautearia com muito gosto com uma guitarra na mão.
Por azar, neste momento não está com a guitarra na mão.
Não estou equipado.
Estes dois dias são um curso intensivo, um mergulho na guitarra português?
Será um concerto de grande simplicidade em termos de apresentação e de meios mas que geralmente cativa as pessoas. A resposta que temos na bilheteira mostra-nos que há um grande interesse. Isto também resultou de um concerto que fiz há dois anos, no mesmo S. Luiz, em que a sala se esgotou e ficaram fora muitas pessoas que tiveram pena de não poder assistir.
Se calhar vai ser pena não fazer dois concertos?
Um para a minha idade já chega.
Que ligação especial tem à guitarra portuguesa?
Refletindo hoje sobre o que me levou à guitarra portuguesa, costumo dizer que foi uma espécie de ato de rebeldia infantil. Na minha casa havia uma prática musical amadora ligada só à música erudita, com instrumentos como o piano, a flauta. E eu ouvi um dia num rádio que estava na cozinha - que servia para o pessoal doméstico ouvir o romance Tide e outras coisas - um instrumento que me chamou a atenção. Perguntei ao meu pai o que era e ele disse que era uma guitarra. Havia nessa altura uns programas na Emissora Nacional de guitarradas com o Artur Paredes em alternância com o Raul Nery.
O pai de Carlos Paredes e o pai de Rui Vieira Nery.
Exato. Havia um médico casado com uma prima do meu pai que tinha estudado em Coimbra, contemporâneo do Artur Paredes, e tocava a música dele. Pedi-lhe para me dar lições. As primeira até foram com um primo que tocava muito poucochinho, era um amador interessado, e depois continuei com lições com o dr. César Bordallo que era uma pessoa muito austera, como se impunha, mas que realmente me ajudou. Depois comecei a ser solicitado nas festas de amadores para tocar, para acompanhar, e comecei a apanhar aquilo que se chamava o estilo de guitarra de Lisboa. Eu tocava uma guitarra de Coimbra, para todos os efeitos, em termos estruturais e em termos de afinação, de tessitura, melhor dizendo. Porque a guitarra de Coimbra afina um tom abaixo da guitarra de Lisboa, um som mais grave.
Quais são as diferenças entre as três guitarras portuguesas - Lisboa, Coimbra e Porto?
No fundo, não existem bem três, existem dois modelos. A do Porto era uma espécie de guitarra de Coimbra que tinha dois modelos. Isto tudo radica na ideia das cítaras. As cítaras compunham-se de vários modelos, várias famílias, exatamente como nos violinos. Havia uma cítara soprano, uma cítara chamada requinta que afinava uma quinta acima da cítara tenor, que era a cítara principal. Temos, em relação à guitarra do Porto e em relação à guitarra de Lisboa, semelhanças muito grandes em termos de dimensão e de tessitura. O sistema construtivo é que era diferente, mas isso é mais difícil de explicar. O importante é que a tradição construtiva de Coimbra acabou por se impor como um modelo dominante, mesmo entre os fadistas de Lisboa, o que na minha geração não acontecia. Aliás, fui um dos primeiros guitarristas a tocar guitarra de Coimbra a acompanhar fado de Lisboa. Por uma razão muito simples: não tinha outra. Quando tinha dez anos, o meu pai ofereceu-me uma guitarra que era de Coimbra, aliás fabricada no Porto, para tornar as coisas mais confusas.
Já que falámos dos pais do Carlos Paredes e do Rui Nery, vamos falar do seu pai também, o arquiteto paisagista Francisco Caldeira Cabral. Não confundir com o filho Francisco Caldeira Cabral arquiteto paisagista.
Também há um neto Francisco arquiteto paisagista, são três gerações e agora se calhar já deve haver alguém na quarta geração em preparação.
Numa família com nove irmãos e com um pai que era uma figura excecional, deve ter dado não só a vontade de entrar em rebeldia como de aprender muita coisa.
Deu para aprender muita coisa, sem dúvida. Mas mais do que isso o meu pai era professor 24 horas por dia. Todos os pequenos e grandes momentos com ele eram de grande aprendizagem e estímulo, porque combinava a formação científica com uma formação literária e histórica notável, com um interesse particular pela música. Numa altura da vida dele tinha pensado, infringindo as regras, tornar-se cantor profissional, e chegou a dar concertos públicos acompanhado pelo grande Fernando Lopes Graça e pelo maestro Jaime Silva Filho.
Não fazia ideia disso.
Ah sim, aliás há uma coisa muito engraçada. Ele participou ativamente no chamado movimento de renovação da música antiga, trazendo para Portugal o primeiro fac-simile das canções de Purcell, do Orpheus Britannicus que ele cantou. Ele foi o meu primeiro contacto com a música antiga, cantando acompanhado pela minha mãe ao piano.
Em casa?
Em casa fazia-se música todos os dias. O meu pai nessa altura era professor no Instituto Superior de Agronomia e quando chegava a casa, no final do dia, antes de jantar, cantava uma hora pelo menos na sala com a minha mãe ao piano.
E os filhos?
Às vezes o meu irmão mais velho também o acompanhava em determinadas coisas. Os mais velhos estavam no colégio e só voltavam nas férias. Havia música sempre. As minhas irmãs a seguir a mim tocavam flauta de bisel e viola, e eu também ia tocando. Tudo isto se passava num ambiente natural.
Mesmo assim, só o Pedro seguiu a vida da música?
A vida profissional, sim. Até uma certa altura, com alguma dúvida sobre se seria mesmo essa a escolha que eu queria. E avisado muitas vezes pelo meu pai de que era um caminho muito complicado. É uma geração muito mais velha do que nós, estamos a falar de pessoas que tinham passado o período da Primeira Guerra. O meu pai ainda nasceu na monarquia.
Foi uma vida muito difícil até agora? As preocupações do seu pai concretizaram-se?
Durante muito tempo os meus pais não iam aos meus concertos. Mas a partir do princípio dos anos 1980 começaram a ir e era muito interessante ver isso: começaram por ir sobretudo aos concertos de música antiga. Era uma coisa que lhes dizia mais, que lhes interessava e agradava mais. Mesmo sendo uma música antiga feita com movimentos históricos, às vezes coisas um bocadinho mais complicada, mais distante das suas próprias referências, o meu pai e a minha mãe eram melómanos com um grande conhecimento. Para a minha mãe, a música acabava com Debussy, o impressionismo já era bastante avançado... O meu pai era mais aberto a outras possibilidades. Quando comecei, eu já tinha dois filhos, já tinha provado que me autossustentava e que tinha capacidade para os sustentar, e a partir dos anos 1980 começou um lado internacional da minha carreira, bastante importante para consolidar uma opção. Já não havia dúvidas nem caminhos a inverter.
Só estudou música ou chegou a estudar outra área?
Estudei música mas a minha aprendizagem é heterodoxa, fora dos circuitos normais. Transitei por várias formações e cursos mas a partir de certa altura, também por via do meu interesse pela música antiga, comecei a especializar-me numa área que já não tem a ver só com a música, a organologia musical, uma área científica que me obriga a estudar um conjunto de matérias que vão desde os materiais, a acústica, uma coisa mais complicada.
A organologia é o estudo científico dos instrumentos musicais?
Exatamente. E no caso dos instrumentos antigos remete para muitas áreas - da História da arte, da iconografia, da iconologia, remete para coisas mais técnicas.
Foi todo um mundo que se abriu para si?
Foi.
Tornou-se não apenas um instrumentista, muito mais do que isso.
Sim, um investigador. Comecei a publicar os meus primeiros ensaios e os meus primeiros artigos em 1982, a convite de Ernesto Veiga de Oliveira.
Com quem fez investigação.
Sim, diretamente sobre os instrumentos populares. Mas tive a sorte de apanhar um período histórico muito especial ao nível da museologia internacional, o que me abriu as portas, logo em 1977 ou 1978, quando fui a primeira vez a Viena de Áustria, no Kunsthistorisches Museum, o Museu de História da Arte de Viena, onde havia uma coleção absolutamente preciosa. Entre os vários instrumentos, uma cítara que pertenceu ao arquiduque Fernando do Tirol. Por acaso, não havia ninguém que soubesse tocar.
E o Pedro tocou?
Eu tive a sorte de tocar esse instrumento de 1574 e de poder fazer um concerto em que toquei a minha própria guitarra e esse instrumento. A partir daí estabeleci uma relação muito extraordinária com o então diretor, dr. Kurt Wegerer, um mestre de organologia. Voltei lá passados dois ou três anos. Foi muito engraçado porque eles tinham acabado de fazer radiografias de uma data de instrumentos. E ele deu-me as radiografias que não tinham sido aceites. Fiquei com uma coleção de radiografias de instrumentos do século XVI originais.
Que lhe permitiram o quê?
Fazer uma data de investigação posterior noutros museus que não tinham esse sistema. Na altura, isso era uma coisa absolutamente nova.
Qual é a sensação de tocar um instrumento tão especial como esse do arquiduque Fernando?
É extraordinário não só por isso. É extraordinário porque eu tinha um livro impresso no mesmo ano da cítara, 1574, um livro de cítara escrito pelo pai do construtor. Por absoluta coincidência, foi publicado - tem lá a data - em Veneza no dia 4 de dezembro de 1574, que é o dia dos meus anos. Que engraçado.
Nunca mais se esqueceu?
Nunca mais me esqueci, claro, e costumo utilizá-lo. Uma das coisas engraçadas desse livro é um prólogo em que se descreve uma série de coisas e inclusive uma invenção do Girolamo di Virchi [1523-1574] que era a adição de uma corda extra, para além das seis cordas tinha mais uma.
Para?
Para aumentar as possibilidades do instrumentos.
E o som da tal cítara?
O som é fantástico.
Como é que se afina? É preciso saber afinar para não dar cabo dos tímpanos de alguém.
A primeira coisa muito interessante de todos estes livros que sobram do século XVI é que começam por falar na afinação e descrever quais são os intervalos. Como havia modelos muito diferentes de cítaras - só em Itália havia cinco - e quando falo em cítaras estou a falar de guitarras exatamente como as portuguesas, só que com uma dimensão mais pequena, igual àquela que chegou até nós no século XIX. No final do século XIX, as nossas guitarras também eram pequeninas, aquilo que hoje às vezes se diz que são "guitarras de senhora". Era o modelo de cítara que se fabricou na Europa desde o século XVI até ao século XIX. O engraçado é que os Métodos começam todos por falar nisto: como encordoar a cítara, e vem a história toda dos calibres das cordas que se tem que pôr, etc. Depois, como afinar a cítara. E depois a técnica de tocar a cítara, com o peito. E só então é que começam as peças musicais que, naquela altura, usavam não uma escrita musical de efeito, como a escrita musical nova, mas uma escrita cifrada, isto é, com símbolos, umas vezes com números, outras vezes com letras.
Portanto, a cada coisa que avançava, tinha de aprender mais?
Exatamente. Normalmente começamos por aprender a parte musical mas pensamos imediatamente na dimensão histórica: O que se estava a passar nesta altura? Quem eram os utilizadores? Como é que surge este instrumento tão ornamentado, quem é aquela figura que está ali em cima? Aquele instrumento é terminado por uma cabeça que tem o torso da célebre Lucrécia romana a espetar o punhal, a suicidar-se, para salvar a sua virtude. Depois vamos procurar quem é esta Lucrécia romana que viveu 500 anos antes de Cristo, foi casada com um general e quando o general foi combater ela foi acusada de traiçoá-lo. Para não perder a virtude, suicidou-se. Isto é extraordinário.
É um trabalho de detetive, de tentar saber tudo sobre?
Mas sobretudo como é que isto permanece na nossa guitarra portuguesa passados 500 anos. E como é que isto surge, por exemplo, na obra de D. Francisco Manuel de Melo [1608-1666] na Feira dos Anexins em que ele diz: "Carinha de cítara? Essa cara beije você" Acho um piadão a isto. As cítaras são os únicos instrumentos ornamentados com uma cara feminina, geralmente, ou com um animal mitológico. O dragão também está associado a esta história.
Na guitarra portuguesa continua a haver ornamentos. Na de Lisboa é um caracol?
É uma voluta. A voluta aparece como uma representação do nosso sistema auditivo, é uma espiral projetada em três dimensões. O que é que nós temos na cóclea, no ouvido interno? É um símbolo da audição.
E a lágrima da guitarra de Coimbra?
A lágrima, peço desculpa, é um disparate. Quando eu era jovem dizia-se - esses tipos de Coimbra andam com o Gazcidla na cabeça.
Era o símbolo do Gazcidla!
Aquilo começa por ser um escudete, que tinha normalmente a forma quadrangular, retangular ou oval, para se pôr as letras ou as armas do possuidor da guitarra. Além desse escudete, havia em alternativa uma flor estilizada que era um símbolo feminino. Desde o período da Renascença, vemos na iconografia flamenga, muitos quadros em que são normalmente as mulheres a tocar cítara.
Isso é curioso, passando agora para o século XXI, porque começam a aparecer mais mulheres a tocar guitarra portuguesa.
É verdade, imensas. Nós já tivemos solistas que gravaram discos de guitarra portuguesa. Nos anos 1920, tínhamos uma concertista bastante notável, não me consigo lembrar do nome. Nos últimos 15 anos, apareceram muitas jovens e no Conservatório as inscrições são mais das meninas do que dos rapazes.
Isto está tudo a mudar, as mulheres estão a ocupar o espaço.
Com certeza. E sejam bem-vindas!
A guitarra portuguesa tem seis cordas duplas?
Ou seis ordens de cordas, ou seis parcelas, como dizem nos Açores.
É mais difícil de tocar do que uma guitarra de seis cordas?
Não. Todos os instrumentos são fáceis ou difíceis de tocar conforme o grau que se atinge. É difícil para um principiante, e sobretudo para um miúdo, por causa da tensão das cordas e por serem cordas muito fininhas de metal. Claro, é preciso massacrar um bocadinho os dedos para conseguir criar a resistência suficiente. As cordas da guitarra têm uma tensão bastante mais elevada. Mas se pensarmos num miúdo que pega num violino ou num violoncelo, aquilo é difícil.
O piano é fácil quando é mal tocado?
Era aí que eu queria chegar. Claro que dá muito gozo a um miúdo tocar -muitos pegam num cavaquinho ou num ukelele, a versão havaiana do nosso cavaquinho, e tocam dois ou três acordes e cantam as suas cantiguinhas. Mas isso é aquela fase mais básica.
A fase dos "martelinhos"?
Exatamente. No nosso tempo havia a história dos "martelinhos".
Lembro-me de um guitarrista estrangeiro contar num concerto uma conversa que tinha tido, creio, como Carlos Paredes, a quem disse que ele era maluco porque tocar guitarra portuguesa com doze cordas era uma loucura. Já teve essa conversa com algum guitarrista?
Na verdade aconteceram-me duas coisas em contacto com guitarristas a nível internacional. Fiz parte de um grupo chamado Les Nuits de la Guitarre, eram maratonas com os maiores expoentes da guitarra clássica. Eles ficavam primeiro surpreendidos com o volume de som da guitarra portuguesa e, segundo, com as capacidades expressivas, que são muitíssimo maiores do que por exemplo os bandolins, os bouzoukis ou os saz, todos instrumentos de cordas. Isso era o principal. E perguntavam: mas qual é a afinação disso, vi-o fazer uma afinação tão esquisita, como é que consegue tocar nisso? É que esta afinação é esquisita mas tem uma lógica e uma história. Se eu retirar esta afinação, tiro um elemento da identidade de um instrumento. Tem mesmo que ser com aquela afinação, por mais difícil. Porque é assimétrica. Há instrumentos cujas afinações, os intervalos entre as cordas, são os mesmos. É o caso do violino, que afina em intervalos de quinta perfeita. É a afinação mais simétrica possível: em todas as cordas as posições correspondem exatamente às mesmas.
E na guitarra portuguesa?
Na guitarra portuguesa não. Temos um intervalo de segunda maior, depois um intervalo de quarta, outro intervalo de quarta, outro intervalo de segunda e outro intervalo de quinta. Não há grandes possibilidades.
O outro tinha razão, é um instrumento maluco.
Tinha alguma razão. Mas esta particularidade da afinação vem da cítara desde o século XVI, eles tocavam com essa afinação maluca. E havia afinações ainda mais malucas e outras coisas mais malucas nos vários modelos da cítara. Por exemplo, não havia o sistema de temperamento igual, ou seja, os meios-tons dentro de uma oitava não eram todos iguais, eram meios-tons maiores e meios-tons menores. Era uma das caraterísticas. Mas algumas das cítaras vinham equipadas de maneira que só se conseguia produzir um tom inteiro e depois meio-tom em determinadas cordas, noutras cordas já se podia tocar os semi-tons. É um instrumento que foi recuperado com a ideia de se estar a revisitar a Grécia Antiga. No século XVI, em pleno Humanismo, está-se a pensar no que os gregos fariam com um tal instrumento. E está associado diretamente à ideia do instrumento do rei David da Bíblia. Por outro lado, no século XVI, com a Reforma, fica imediatamente ligado também à ideia do reformista, do Lutero. Na Alemanha existe até um instrumento chamado Lutherzhiter que é a suposta cítara do Lutero. Ninguém conseguiu saber até hoje se o Lutero tocava cítara, mas o que é certo é que há uma série de manuscritos e de obras impressas em que se tocam salmos bíblicos acompanhados à dita cítara.
O seu disco mais recente é O Labirinto da Guitarra, gravado em 2013.
São dois cds, são parte de um ciclo que iniciei em 1997 com as memórias da guitarra portuguesa em que faço a recuperação do repertório clássico desde o século XVI até às minhas próprias composições do século XX.